quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Residência II

assentei com as próprias mãos
um quarto em teu pensar
no teu seio, fiz repouso
deitei, cômodo
e criei, mudo
o que sentia, só
no reboco, parede branca
buraco de armador
ruído de rede
o ranger: saudade atroz







segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Os bilhetes para Maurício 5/622

eu vi. a bicha é mais bonita que a rapa do tacho de canjica.

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Uma xícara de cólera.


Ela fez uma pausa, coçou o nariz. A rinite atacava. Sempre atacava durante as viagens. A voz feminina no sistema de som anunciava o próximo vôo. Eu continuava calado, olhando alternada e lentamente para ela e para as pessoas que passavam com malas, bolsas e casinhas de cachorro feitas de espuma. Pensava em como sabia de tudo que ela estava dizendo, e pensava em como estava surpreso por não estar triste, nem decepcionado, ou machucado. Três anos loucos de banhos de mar à noite, de ressacas homéricas e de viagens-surpresa, apenas pra matar a saudade. Três anos dos mais desastrosos jantares, do sexo mais aperreado e sem planos; a falta de plano foi o motto daquela relação. E agora ele havia se esgotado. Eu entendia cada palavra que ela dizia, mas a única coisa que pensava agora era nela. Me preocupava com ela, com a rinite. Ela ia pegar o vôo de volta? Havia acabado de descer, será que planejou isso? Será que iria ficar no Rio? Acho que sim, que ela iria ficar na casa de Renata. Não sabia e queria perguntar, mas ela começou a esbravejar novamente. Eu continuava sabendo exatamente do que ela estava falando, mas não conseguia tirar os olhos das duas narinas dela, tão vermelhas. Será que ela trouxe a loratadina? Ela não parava de falar. Alguma coisa sobre compromisso e confiança. Eu escutava, entendia cada insulto mas, ainda assim... Eu acho que tenho um pouco ainda, no carro. Antialérgico, digo. Agora ela falava sobre perder tempo e dinheiro, e passagens de avião e excesso de bagagem. Eu não sabia onde ela tinha arrumado tanta tralha. Eram só 3 dias. Ela sempre fazia isso. Da outra vez a gente acertou de se encontrar em Búzios depois de todo aquele frenesi de datas, horários, passagens, reservas e a porra toda. Feriadão de nossa senhora. Ela me chega com a merda da mala de rodinha faltando uma rodinha. Quebrou na saída, ela me disse. Claro. Uma caralhada de troço sem futuro. E ainda tinha que subir a ladeira da pousada, de pedra também. Porra, eu adorava aquela mulher, e ela tava ali na minha frente, com o nariz fodido, tinha pego dois vôos, jet lag pesado batendo na cabeça. E eu ali, escroto, pensando em mandar ela de volta. Foda. Mas puta que me pariu, eu não aguentava mais ficar olhando pra mão dela subindo e descendo pelo nariz e a cada fungada parecia que ia explodir - eu e o nariz. Os olhos dela iam ficando cada vez mais vermelhos e eu comecei a achar que ela estava falando em grego antigo. Não conseguia entender mais nada, não conseguia processar. Os olhos dela lacrimejavam tanto que eu estava em dúvidas se ela estava chorando ou se a rinite estava condensando ranho em lágrimas. Que bagunça. E todos nos olhavam. Eu procurava, com os olhos, um lugar pra me esconder e cada vez que meu olhar recaía sobre a placa que dizia ''sanitários'' ela batia na mesa, forte. O saleiro, porta-guardanapos e etc balançavam, faziam barulho; a colherinha saltava dentro da xícara e fazia quele barulho metálico. Eu olhava de novo pra ela. Das três primeiras vezes, meio assustado. Agora, já voltava a olhar pra ela com impaciência. Puta que me pariu, como eu queria um cigarro. Enquanto ela falava sobre a semana passada, no dia do aniversário do infeliz do cachorro. Aniversário de cachorro. Ela me carregou pro aniversário de um cachorro que nem era dela. Foda. Eu me senti penetra numa festa de cachorro. Enfim, ela me chamando de insensível e eu pensava justamente em escrever esse texto. Talvez eu seja insensível mesmo. Foda-se, eu não aguentava mais. Vou acender um cigarro aqui no saguão mesmo, na esperança de que algum segurança peça pra eu me retirar. Eu vou negar, ele vai dizer que vai ser forçado a me retirar. Vou mandar ele me retirar e, quando ele encostar em mim, vou dizer que ele não pode fazer isso. Vou causar uma confusão. Daí vou ser retirado à força e ela vai ficar lá, lacrimejando, com o nariz escorrendo e três malas coloridas. E eu lá fora, fumando meu cigarro e pensando onde foi parar a mulher que disse que me amava enquanto eu batia na bunda dela. Filho da puta insensível, foi o que ela disse agora. Consegui escutar. Talvez eu não acenda o cigarro, enfim. Gostaria de sentir pelo menos raiva, pelo menos algo. Algo que me impulsionasse a também discutir, a dizer o quanto ela era falsa, fútil e mentirosa; o quanto eu tive que aguentar as mentiras dela. Que ficou presa no trânsito, que a bateria tinha acabado, que Ivan era só amigo e tava ajudando a resolver as burocracias do financiamento. Eu era todo ouvidos agora, mas continuava sem entender porra nenhuma. Um monte de semântica ininteligível. Eu deixava ela falar, ficava olhando pra xícara. Analisando cada imperfeição. Tinha uma microrachadura. Eu estava me segurando, me forçando a não segurar aquela taza com as mãos e analisar melhor. Talvez tenha rachado enquanto alguém lavava com pressa, pra terminar de arrumar tudo e ir embora, fechar o café e ir pra casa, pegar ônibus, metrô, fazer baldeação na Sé e seguir pro Brás ou pra Vila Matilde. Enfim. Cansei de escrever.

domingo, 13 de agosto de 2017

As partes de una muchacha uruguaya






Triste y loca, foi a primeira coisa... perdão, a segunda coisa que ela me disse. Che, soy triste y loca, no te acerqués. Eu tinha saído pra fumar um cigarro. Tateei meus bolsos todos, de cada camada de roupa - uma jaqueta de couro, uma blusa, calça jeans - e nada. Nenhum sinal do maço de American Spirit que eu vinha fumando feito um degenerado nos últimos dias. Entrei novamente pela porta do Ramón, o pub derrubado onde estávamos Oscar e eu, meu amigo chileno. Voltei à mesa, interrompi a conversa com uma amiga espanhola dele, que apareceu lá. Perguntei se havia visto os cigarros, disse que não. Olhei embaixo, ao redor. Perguntei a um casal ao meu lado se haviam visto um maço amarelo, disseram que não. Saí novamente, refazendo meus passos olhando para o chão cuidadosamente. Talvez eu tivesse deixado cair, sei lá. Lá fora, olhei a calçada, olhei detrás do tonel de óleo que servia de mesa; nada. Pus as mãos na cintura, franzi a testa, coçei a espinha que nascia próxima à nunca; nada. Me emburrei por ter perdido meio maço de cigarros e já tinha decidido ir embora quando escutei aquele sotaque clássico, melódico, cantado, detrás: ''Oye, tenéis fuego?''. Me virei e dei de cara com uma mulher nos seus vinte e poucos anos, baixa. Sardas, muitas sardas, milhares delas. Foi a primeira coisa que eu notei. Seu rosto angulado estava salpicado delas. As maçãs levemente coradas pelo frio, também a ponta do nariz pequeno. Os olhos tinham uma acentuação indígena, ligeiramente inclinados para dentro. Ficou esperando minha resposta. Calado, sem conseguir desviar os olhos, meti a mão no bolso da jaqueta e entreguei meu zippo, tão querido por mim. Comprado em Nápoles exatamente um ano antes. Engraçado como enquanto eu dirigia o isqueiro à mão dela esse pensamento me ocorreu. Um ano atrás eu estava em Nápoles, fazia tanto ou mais frio e eu tinha acabado de tropeçar no último degrau da stazione toledo, precisamente porque vinha tentando acender o cigarro. Tropecei, foi cigarro pra um lado, isqueiro pra o outro, alguém o  chutou e nunca mais eu vi. Eu estava completamente bêbado, afinal. Fui andando em direção ao café Varriali, encontrar Oscar e os outros. No meio do caminho, uma loja Tabacchi/Lotto estava aberta. Entrei com a intenção de comprar um isqueiro barato e saí com o zippo que agora a uruguaia de olhos índios usava pra acender seu cigarro. Inspirou longamente, olhou para o céu, expirou a fumaça, pôs o cigarro novamente na boca e lembrou que não tinha agradecido e nem devolvido o isqueiro. Inspirou mais uma vez, me entregou o mechero e disse ''gracias'' rapidamente, balançando a cabeça e expirando olhando para o outro lado. Eu continuei calado, não entendia muito bem ainda que beleza era aquela e não tinha decidido se ela era tão bonita quanto eu achava que estava vendo. ''Me regalás uno?'' perguntei. Não disse nada, apenas me estendeu um maço de American Spirit amarelo. Olhei surpreso. Peguei um dos cigarros, acendi e continuei calado. ''Me roubou o cigarro, uruguaia safada'', pensava, enquanto tragava lentamente. Me virei e me aproximei dela. Ia dizer que tinha deixado o maço cair, que era meu, mas ela se virou, me olhou com um tom repreensivo - leve, admito, mas repreensivo - e disse aquelas segundas palavras. Che, soy triste y loca, no te acerqués. Sorri amarelo. Continuei olhando para ela, mas já não me olhava. Ela estava nas últimas tragadas enquanto eu pensava se devia perguntar ou não, se deixava ela sair com meu cigarro ou não. Tragou forte e, impaciente atirou a bituca longe, no meio da rua. Olhou pra mim, soltou a fumaça e disse ''quédate con esta mierda'' e entrou batendo forte a porta do Ramón.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Conversando com Lúcio

você me lançou de volta;
eu, garrafa ao mar.
você me desenterrou à beira da praia
numa madrugada molhada
eu, garrafa ao mar
no limiar do esquecimento
apenas uma réstia de vidro aparente
você me pegou em seus dedos finos
anéis, bracelete, pulseira e búzio
eu, garrafa ao mar
pude sentir cada olhar seu
admirando cada mancha
arranhão, lasca, sujeira, rachadura
você me acariciou, afagou
me girou nas mãos
a mim, garrafa ao mar
e tentou enxergar por entre
o opaco de tantos anos
sob a maresia, o sol, as chuvas
areia, pedras e cascos de velhas jangadas
um opaco de tantos anos vindo
e indo por mares sem glória
eu, garrafa ao mar
depois de todo esse tempo à deriva
mas muito mais tempo sob a areia
estava entre as suas mãos
sentia cada toque, ainda que sutil
ainda que escasso, ainda que não-merecido
na tentativa inútil e vã
de enxergar o que havia dentro
mas eu, garrafa ao mar
era um vidro quase oco, quase vazio
quase calado, quase sem mensagem
e  à única luz da noite
num minúsculo papel amarelado e roto
gasto, esmorecido, desbotado
no limiar da  dissolução
se lia:
me lance de volta ao mar



quarta-feira, 9 de agosto de 2017

As cartas para Ana 17/∞

Ana, eu sei que esta deveria ser a última carta, que é o nosso - meu - acordo, e que eu deveria parar por aqui, eu sei. Não pense Ai, mais uma, meu deus, por que você não me esquece, não pense isso Ana, por favor. Mas é que eu não consegui absorver toda a sua energia, essa sua força. Eu tentei, você sabe que eu tentei.
Todas aquelas vezes em que você simplesmente queria ficar trancada no quarto, escutando PJ Harvey  - I'm begging, Jesus, please send his love to me - e escrevendo no seu diário - você ainda tem todos, desde os 9 anos -, e aí você para de escrever, se levanta, dança um pouco sozinha no quarto, olha pela janela, acende um cigarro, repara no edifício em frente - um monte de janelinhas, cada uma com vida própria - imaginando quem são aquelas pessoas dentro daquelas salas - e você até conhece uma delas, Moacir, o dono da padaria, e consegue vê-lo através da janela fazendo polichinelos às duas da manhã. Você apaga o cigarro no trilho de metal da janela - que você adotou como cinzeiro -  e volta pra cama, continua a escrever no diário. Nada disso é mistério para mim, é claro, porque eu sempre vi você fazendo essas coisas. Lembra quando chegamos bêbados às quatro e doze - guardamos essa hora pra sempre - e achamos que Moacir estava atrasado pro pão do dia e combinamos de gritar juntos moacir, no três? E quando cheguei no dois você segurou meu braço e disse Peraí, mas é um dois três moacir ou um dois três e moacir? e eu disse um dois três moacir, você disse ok e lá fomos nós um dois e você segurou meu braço novamente e perguntou Mas vai ser um moacir curto tipo moacir! ou um moacir longo tipo moaciiiiiir? Eu falei que é óbvio, Ana, é óbvio que seria um moacir longo, segurando no i porque fazia mais sentido e você concordou bêbada, daquele jeito bem infantil, fechando os olhos, apertando os lábios e acenando exageradamente com a cabeça, para cima e para baixo e fomos de novo um dois três moaciiiiiiir mas você não chegou a terminar, lembra, porque você começou a rir, inclusive você deu aquelas risadas meio presas que escapam como um cuspe, e acho que até hoje deve ter um pedaço de esfiha de carne mastigada naquele vidro. 
Ana, você era assim, talvez até seja, infelizmente eu não sei mais, mas espero que sim. Talvez você fosse assim porque você estava comigo e talvez você até olhe para trás e pense Que ridícula eu era. Talvez... gostaria de saber. Minto, não gostaria. Esse mundo é meu, essa vida é minha, esse passado é meu. Vou deixá-lo como está.
Mas sim, a sua força. Você sempre teve isso de não ceder a certos impulsos, principalmente se estes impulsos fossem causados por outra pessoa. Não. Você seguia lá, firme, irredutível. Acho que você maturou essa característica enquanto dava as aulas de inglês e os pirralhos se matavam ou faziam as chantagens emocionais típicas das crianças do Leblon. Quando sua mãe tinha aqueles acessos de cobrança que antes lhe irritavam tanto e depois você simplesmente a deixava falando sozinha e eu dizia Ana, ligue para ela e você dizia que não, que era exatamente isso que ela queria e que enfim... As coisas entre você e a sua mãe eu desisti de entender pouco tempo depois desse dia.
Mas então, a sua força. Você não deixava mais as pequenas coisas cotidianas te abalarem. O vazamento eterno do banheiro que era não-consertado a prazo, aquele azulejo mal colocado justo na entrada do apartamento e que, desde o primeiro dia que eu tropecei, você disse que estava brigando com Messias, pra que ele consertasse e até a última vez que eu passei por cima dele - não tropecei, afinal - e você nesse ponto já tinha há muito desistido de brigar com o pobre Messias e agora simplesmente ironizava toda a situação. Aquele dia maravilhoso, tempos depois que você já tinha decidido que não era Messias quem tinha culpa e sim Dona Zélia. E aí você foi com o pé enfaixado na reunião de condomínio, sentou na primeira cadeira e ficou com as pernas cruzadas, balançando o pé. Dona Zélia perguntou - Como se aquela vaca se importasse, você disse - O que foi isso minha filha e você disse que tinha sido a porra do azulejo. Lembro que você disse que ela falou alguma coisa sobre reforma do prédio, sobre empresa de prestação de serviços e daí você não lembrava o resto porque a raiva foi tanta que você esqueceu a história do pé e saiu bufando da sala. Lembro perfeitamente da gente sentados no sofá, tomando conhaque, eu com a mão no seu pé enfaixado e estávamos considerando a possibilidade de deixar assim mesmo pra que você não fosse trabalhar e foi nesse dia que você decidiu parar de se preocupar com essas coisas. Acho que você nem sabe que foi exatamente nesse dia, e provavelmente está irritada agora porque eu insisto em dizer como você se sente e você odeia que eu faça isso.
É por isso, Ana, por isso e também por várias outras coisas, óbvio, que eu decidi que não vou parar mais nunca de escrever para você. Simplesmente não vou. Me rendi a mim mesmo, me rendi à minha tristeza, à minha saudade e à minha loucura. Essa mesmo. Eu volto pra você sempre que escrevo e tanto sabíamos disso que tínhamos decidido que eu escreveria somente até certo ponto. Porque você sabia que me faria bem - até certo ponto. Mas Ana, eu quero que tudo isso se foda - até certo ponto. Vou continuar escrevendo, vou continuar enlouquecendo e vou continuar insistindo em nós - até certo ponto.










terça-feira, 1 de agosto de 2017

No desvio do nó




No peso de uma despedida rápida e conturbada, caindo entre os cabos de dados. Dois corpos separados, afastados, com a saudade fluida iniciada, começada. Contemplada bem de perto e sentida bem de longe. Saudade real, esfomeada, ávida. A feiúra de tanta sinceridade, travestida no drama: não há risco detrás da linha de segurança. A completa noção de cada dia que falta, de cada hora não vivida: Hoje acabou-se o amanhã. Amanhã não vai chegar. O tempo andou demais. Tanto que não devia ser dito, tanto que não foi dito, tanto por ouvir. Tanto por deixar morrer. Venha-se o tempo, venha-se a porra do porvir e adeus a tudo que houve aqui, logo aqui atrás. Precisar estar assim, pra nunca mais viver de novo o que sempre foi vivido e assim quem sabe despencar do vôo numa queda triste e solitária, somente um sentir bilateral e longínquo: lá onde não já há mais aqui.