sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Hen kais

I

as flores do lírio
transpiram calor que abril
gozar poesia




II

vem o beija-flor
violentar inocência
e voa-se embora




III

beija a flor e voa
entre as pétalas vazias
toda rosa é oca




IV

perfume da acácia
a língua do colibri
natureza fálica




V

sêmen de serpente
inocula vida curta
gozar é veneno




VI

no calor da carne
sobe as ladeiras de olinda
o valor da carne

d

d

ilustração: Michel Carlos (link do blog dele aí do lado, vale a pena conferir o trabalho!)

terça-feira, 20 de novembro de 2007

ensaio sobre a canção

( )

pescar no redor consciente a poesia
não me é mais
eu não posso abrir um pára-quedas de palavras
de frases, de versos
o chão lá embaixo
abaixo
me observa, conquanto
a poesia não me seja




( )

eu tenho um vão de emoções
pintado entre as várias faces desta obscuridade
são peças de gesso dissolvidas
no sopro ainda úmido da canção




( )

a poesia
não está em mim
agora

a poesia
me rodeia
cambaleia entre os troncos rijos da minha consciência

a poesia
me foge
e me maltrateia

ah! a poesia
como essa vida fosse
poesia, não há nada
que não seja
poesia




( )

não tenho restos
eu acabo inteiro
assim que me esvaio

não tenho cantos
eu desafino inteiro
e não lixo as bordas

eu sou inteiro e não
sou só(m)bras
essas rugas

nas dobras de cada fé
de cada esquecida fé
eu guardo
a poesia

domingo, 18 de novembro de 2007

Prapele, canentra

"A escrita me saía espontânea, num ritmo que não era meu, e foi na batata da perna de Teresa que escrevi as primeiras palavras na língua nativa. No princípio ela até gostou, ficou lisonjeada quando eu lhe disse que estava escrevendo um livro nela. Depois deu pra ter ciúme, deu pra me recusar seu corpo, disse que eu só a procurava a fim de escrever nela, e o livro já ia pelo sétimo capítulo quando ela me abandonou. Sem ela, perdi o fio do novelo, voltei ao prefácio, meu conhecimento da língua regrediu, pensei até em largar tudo e ir embora pra Hamburgo. Passava os dias catatônico diante de uma folha de papel em branco, eu tinha me viciado em Teresa.Experimentei escrever alguma coisa em mim mesmo, mas não era tão bom, então fui a Copacabana procurar as putas. Pagava pra escrever nelas, e talvez lhes pagasse além do devido, pois elas simulavam orgasmos que me roubavam toda concentração. Toquei na casa de Teresa, estava casada, chorei, ela me deu a mão, permitiu que eu escrevesse umas breves palavras enquanto o marido não vinha. Passei a assediar as estudantes, que às vezes me deixavam escrever nas suas blusas, depois na dobra do braço, onde sentiam cócegas, depois na saia, depois nas coxas. E elas mostravam esses escritos às colegas, que muito os apreciavam, e subiam ao meu apartamento e me pediam que escrevesse o livro na cara delas, no pescoço, depois despiam a blusa e me ofereciam os seios, a barriga e as costas. ... E davam a ler meus escritos a novas colegas, que subiam ao meu apartamento e me imploravam para arrancar suas calcinhas, e o negro das minhas letras reluzia em suas nádegas rosadas. Moças entravam e saíam da minha vida, e meu livro se dispersava por aí, cada capítulo a voar para um lado. Foi quando apareceu aquela que se deitou em minha cama e me ensinou a escrever de trás para diante. Zelosa dos meus escritos, só ela os sabia ler, mirando-se no espelho, e de noite apagava o que de dia fora escrito, para que eu jamais cessasse de escrever meu livro nela. E engravidou de mim, e na sua barriga o livro foi ganhando novas formas, e foram dias e noites sem pausa, sem comer um sanduíche, trancado no quartinho da agência, até que eu cunhasse, no limite das forças a frase final: e a mulher amada, cujo leite eu já sorvera, me fez beber da água com que havia lavado sua blusa."

(Budapeste, Chico Buarque)






"Eu entrava no quarto de Luísa, onde nunca entrei, e conseguia ler o diário dela, que nunca li. Era a violação que eu mais tinha sonhado na vida: ver o que ela tanto escrevia, apalpar as letras, acariciar as linhas, descobrir o porquê do ciúme das páginas. Eram páginas de papiros, as escrituras em língua icônica, ideogramática, mas eu lia plenamente. Nenhuma noite com Luísa na cama tinha me dado tanto prazer. Desde a nossa primeira relação, aos gritos, a cada orgasmo conjunto, nunca tinha experimentado um gozo tão brutal como aquele que me penetrava do diário. Era a língua das palavras que me acariciava por dentro, me contorcia, me dava breves flutuações. E o mais extraordinário era que a autoria desse novo orgasmo, literal, era de Luísa; e meu amor por ela então se multiplicava a cada letra. Eu tentava folhear os papiros, com o êxtase de quem descobre a escrita ou registra, para os tempos prósperos, o primeiro orgasmo da humanidade; algo assim da arqueologia íntima do ser humano, perdida nos subúrbios dos desejos primitivos, e que jorrava na ponta dos dedos e da língua."

(O evangelho segundo Lúcifer, Arturo Gouveia)

domingo, 4 de novembro de 2007

Esmeralda Hortelã

III


Das terríveis tormentas infantis, ingênuas jogatinas vis, uma jóia ao léu perdeu-se das perfídias pueris e emergiu-se correta e decentemente lá dos mares, brotou-se da terra aos ares, opôs-se da cria dos lares e foi-se, fez-se, viu-se, seu-se e é-se agora Esmeralda uma doce moça nessa face conjugada de homens-posses e mulheres-falsas. Solta, Esmeralda pode partir pela porta para percorrer por perto e por longe os longos céus, distantes vários acres, nas asas dos sonhos em que Esmeralda vê-se sempre, sempre solta a flutuar os ares sobre os lares desde quando a ilusão de Esmeralda instalou-se fixa sob as frouxas madeixas capilares.
E isso foi há muito tempo atrás.


Dos toques, da impressão

Direção em contramão os hormônios
De Esmeralda cor de mar
Diversão e aversão aos demônios
E Esmeralda é vento e ar

Que voa-se por onde quer-se
E abriga-se onde der-se
Desce-se, sobe-se, volta-se
vai-se, vem-se, í-se
sabe-se quando se quer-se ficar-se

Esmeralda é vontade nos vislumbres da maior idade

Tépida fatia de emoção
Lânguido cortejo de prazer

Esmeralda e o toque nos umbrais dos portais da tarde.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Amém

pouco a pouco
eu escapo entre
os vãos de uma consciência
fluida

derramo cada
gota
do meu canto

e o mundo se enche de poesia

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Todas as águas

( )

a poesia
é o epitáfio da
minha consciência
e o amanhã
as lápides
num cemitério
de emoções




( )

meu veleiro não é mais eu
eu não sou aquele
que navegava entre os mares da poesia
a poesia acabou
o mar secou
meu casco partiu
barco naufragou

amanhã, talvez
o mar se recomponha
para calcar, sob as gélidas pás
do meu navio paraibano
uma torrente acre de
palavras