sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

As parte de Clara

Ela estava completamente ao meu redor; ia e vinha em diferentes e inúmeras formas: um barco, uma casa, uma folha e três shots de bourbon. A via nos copos, nas brasas do meu cigarro barato e nas ondas do mar; a via nas solas dos sapatos de salto alto rodopiando pelo salão completamente esfumaçado, giros e giros e giros, circulando pelo tablado de madeira gasto pelos tantos giros de tantos saltos - altos ou não. Ainda que Clara estivesse lá - e aqui eu evito todos os trocadilhos infames, amadores, infantis e clichês - eu nunca a via. Aqui também minto: a vi em sonhos, em imagens pensadas e em fotografias. Ainda que ela estivesse lá, eu nunca a via. Porra, quantas foram as sensações que eu senti? Que classe ou natureza de conjunções químicas compõem o resultado destas negociatas psicológicas? Quem está por trás disso? Sou eu, é ela, somos eu e ela? Somos eu? O que está acontecendo, onde estou e para onde vamos? Eu me atrevo a perguntar e me atrevo a decidir a resposta: não sei. A única e inescrupulosa arte da esperança; o não-altruísmo da sentença particular: eu, eu e eu. 

Eu lhe ofereço prêmio nenhum. Não tenho um passado glorioso nem um futuro promissor e, por deus, meu presente é um pobre gato vira-lata agonizando na sarjeta. Não sou um homem exemplar, nunca fui e a soma destes me delata o porvir: nunca serei. Fugi das minhas próprias guerras, desertei meus batalhões, traí meus companheiros e decepcionei meus capitães; tudo em vão. As guerras foram perdidas, os batalhões, estraçalhados, companheiros foram mortos e capitães enterrados em valas coletivas sem glória nem honra. Onde foi que eu errei? Provavelmente em tudo e com todos. 


Mas estará à sua frente um homem ciente do seu próprio tempo, de sua própria condição e de seu papel neste mundo. Um homem que sabe, com todas as certezas que lhe são cabíveis, que não há nada neste universo ou em qualquer outro imaginável, que a única centelha possível só existe quando todas as outras faces da solidão desaparecem, oferecendo espaço, tempo e vontade para o surgimento daquele impronunciável, impraticável mas inexorável sentimento: