terça-feira, 6 de março de 2018

As cartas para Ana 21/∞

A luz se apagava e eu lhe via, Ana. Era sempre assim: O escuro, a fresta da porta, um flash de farol, o neon esverdeado. E aí eu lhe via. Ficava acocorado na esquina da parede; aquela junção perto da janela onde a gente não colocou nenhum móvel, nenhuma planta, nenhuma cadeira. E aí eu ficava lá, agachado como um menininho de castigo, fumando meu cigarro o mais lentamente possível, olhando pro sofá onde você deitava com as pernas cruzadas em cima do pufe, comendo pipoca com molho tabasco. A luz apagada, eu assistindo você apoiando a tigela de pipoca no bucho, rindo alto como você sempre riu, assistindo cartoon network. 
O escuro me trazia uma solidão que eu adorava sentir, Ana. Era uma solidão acompanhada de você, sabe como é. Era eu sozinho mas sentindo a sua presença. Em noites assim, de escuros e neon, eu costumava me esconder naquela esquininha, bem do lado da tomada que perdeu a tampa e nós nunca consertamos. Ficávamos eu, meu cigarro e uma tomada descoberta, lembrando de quando você chegou a primeira vez naquele apartamento.
Era Março, seis, Ana. Lembra? Bêbados feito Zeca Pagodinho no quintal de casa, tropeçamos na porta. Você se jogou no sofá, como se fizesse isso sempre, como se fosse seu. Eu percebi isso na hora e me senti feliz. Ficou largada lá, rindo não sei de quê. A porta ficou aberta. Fui acender a luz da cozinha, pegar uma água. Deixei a geladeira aberta, trouxe uma garrafa de água de plástico pra você. Você me perguntou se era vodka, eu disse Claro, bebe. Você bebeu e jogou a garrafa no chão, Seu puto isso é água, e rimos. Deitei na rede. Escutava você respirando e gemendo, Ai ai tô muito louca. 
Dormimos assim. Ou melhor, desmaiamos assim. No dia seguinte, eu levantei, você continuava largada com o pé pra fora do sofá, os cabelos meio dourados, meio marrons, cobrindo parte do rosto, a mão apoiando o queixo. Eu só conseguia pensar E agora. Me levantei devagar, fazendo um esforço sobrenatural pra sair daquela rede; mijei. Fui na cozinha passar um café. A água esquentando, eu encostado na parede da sala, olhando você deitada. Seu vestido levantado, deixando as coxas descobertas, era lindo. A luz de manhãzinha deixava um rastro de brilho por entre as frestas das cortinas, iluminando sua perna, longitudinalmente. Fui lavar as canecas, fiz barulho. Você acordou, olhou por entre os cabelos. Se espreguiçou. E aí você disse a frase que seria nosso bom dia pelos próximos quatro anos, onze meses e dois dias, segundo as minhas contas: Dor de cabeça da porra.