sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Concretualidade


terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

A noite dos varões

À Caroliane dos Anjos só sobrou - após despertar e constatar com felicidade genuína e recatada a pequena mancha encarnada nos lençóis - vibrar em silêncio para não acordar as suas irmãs. Então recostou-se à cama e imaginou como seria a sua noite, agora que já podia se considerar um fruto da evolução: uma moça de verdade; e logo mais, se tornaria uma mulher experimentada nas artes do prazer e talvez até mais: nas artimanhas do amor.
Passara toda a infância ouvindo as histórias das irmãs e das primas sobre a noite em que foram ter com os varões e se deitava rezando aos arcanjos do seu nome que lhe metessem a espada celestial entre as pernas dela, para verter o sangue divino que a traria ao mundo real. Chegou ao absurdo de furar o pescoço das galinhas para colher sangue e derramar sobre as vestes, à noite, e assim enganar os seus pais e também a biologia de Deus. Não foi feliz, pois no momento em que derramava o líquido na cama, sua irmã Clarissa deu um urro de pavor de dentro das insanidades do sono, fazendo com que Caroliane derramasse todo o sangue no chão. Teve de limpar com trapos que enterrou no quintal, à meia-noite.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

O aperreio de Jacó

Eu gosto de você. É um gostar assim estranho, etéreo; de longe. Eu gosto, na verdade, é de sentir por você uma atração que se baseia - imagino eu - na curiosidade: imaginar quais são as coisas que você imagina, o que você pensa a respeito de certas outras coisas, mas principalmente como você reagiria diante de algo que eu lhe apresentasse, e o que eu receberia em troca. Meu gostar é uma vontade incrível de conhecer você, por dentro e por fora, pelos lados, os cabelos, pele, cheiro. É também meu medo de gostar de você, isso. Você me deixa completamente desnorteado, e dito assim, parece exagero, e pode até ser, mas o que é importante você entender é que eu estou numa linha tênue, bastante fina entre a decisão iminente em prosseguir com minha curiosidade, e entre ficar te observando de longe, como eu venho fazendo há tempos.a poesia que eu faço não é nada mais do que uma manifestação dessa curiosidade: é minha forma de ser. É a minha verdade para você: eu lhe vejo poesia, eu sinto você como poesia; pra mim você é poesia. E isso não é um elogio, é mais além: é uma invocação. Eu tenho medo de gostar de você, porque eu já gosto, então eu acho que tenho medo é de, a partir desse gostar meio capenga, eu não consiga me desfazer dessa curiosidade bizarra por você.
O que é você? O que tem aí dentro que faz você ser desse jeito? Por que isso está aí? Será que é o que eu imagino? Você pensa em mim? O que você gosta de ouvir? Será que você, com toda essa volúpia intelectual, perde pelo menos um milésimo de segundo conjeturando os fatos que poderiam me levar até isso que é você?
Nas suas palavras, saber por quê você é "densa, oculta, secreta, privada."
Eu sou um barril de pólvora e qualquer fagulha sua me faria explodir. E não tenho o menor pudor de admitir isso.
Eu podia estar escrevendo diretamente pra você, e por que não estou?

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Amargura para Geísa

Noutra vez - num domingo pela manhã - estava eu limpando os líquidos corporais acumulados na cama durante a noite, retirando com uma pá as fezes que ela deixara espalhada, enquanto ela repousava na banheira de águas perfumadas - canela, rosas, menta -, esperando que eu terminasse a fétida tarefa e fosse ter com ela, para esfregar-lhe as costas, os imundos quadris e as banhas mal-cheirosas. Geísa fede, mas eu faço o possível para mantê-la limpa e bem cuidada. Esfrego-lhe por inteiro com um sabão aromático à base de ervas, e deixo-a metida na infusão de folhas e raízes, para acalmar-lhe a mente perturbada. Detive-me com as sacolas de resíduos na escada, a meio caminho das latas de lixo, ao ouvir a campainha. Repetidamente ela balançava a sineta, esperando que eu aparecesse. Não fiz menção de retornar, e continuei meu caminho. As sacolas pesavam - líquidos e restos podres de Geísa. Joguei-as no devido lugar e voltei pela cozinha, para tomar um copo de água. A campainha não tocava mais. Lavei minhas mãos lentamente, subi as escadas e encontrei Geísa submersa, a face rubra, os olhos saltados, o corpo exaurido de Geísa. Contemplei durante uns segundos aquela massa obesa, disforme sob a água, admirando os pulmões de Geísa se afogarem, e seu coração lutar para bombear sangue para um corpo inerte. Não; Puxei-a pelo pescoço e a ouvi tossir, engasgar-se e regurgitar água perfumada por todos os poros. Olhei para ela, as faces retomavam a cor normal, e ela devolvia um olhar anuviado. Não.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Da série "Marília: Poesia"

"Deixa-me te confessar isto: eu te seduzo com estas palavras soltas. Sinto que quando falo contigo, assim, de forma desconexa e cheia de subjetivismo, tu me amas mais, porque sou estranha a ti e a espécie humana que tu te limitas."




Memorília

através do nervo opticular
pelas paredes córneas, cristalinas,
gelatina, aquosa, vitrificada retina
invertida, insistida, escurecida,
se fez, no concílio cerebral
o impulso de Marília.

operacional o vitrificado olho
guardando cerebralmente
na mente a imagem da menina

declarou explicitiva
semanticamente episódica
a memória de Marília

nos têmporos dos lobos laterais
profundamente arraigados
os pensamentos Mariliais

para lá ficarem.




Poesília

solta o facho, aquece
pudesse, Marília Poesia
a blusa apretece, aparece
cabelo encastanhece, flutua
lábio avermelhece, sorrisa

versifica o teu olho com o meu
halifica tua boca com a minha
palavrifica tua inteligência comigo
sentifica a minha alma com a tua
poetifica teu corpo com o meu

me aparece assim, achada,
exultante, exaltada Marília
bronzeada, perfumada
clareada, aquecida Poesília.




Versília

o martírio da emoção
é o globo ocular
o vento que sopra de dentro
é veneno, é veneno
vencendo, dizendo
falando, chamando
clamando, querendo
fazendo, pedindo
insistindo,

existiu
só verso.

versoar
marília.

o martírio da emoção
é o canto, exposto
desgosto da posição
do tempo, o tempo
demora; na espera
marília dorme nela

o martírio da emoção
é versoar Marília.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

O homem que permaneceu

Josué viu muitas almas perdidas pelas marolas dos mares de sua vida, e sempre tencionou jazer num paraíso post mortem de virgens cálidas, conhaques de idade superior à sua, aguardentes fabricados nalgum paraíso alcóolico enterrado nas brenhas da embriaguez, e tanto destilado quanto pudesse ingerir seu corpo paradaxoalmente decomposto e desencarnado. Não porque soubera que morreria exatamente naquele momento, naquela noite, naquela semana de loucuras, batizado pelos mil odores do álcool, durante as noites de torpor ébrio que o envolveu desde que se passara pela prova - condizente com a sua idade - dos mais idosos: a solidão, só e acompanhada, que o fez enxergar mais além do horizonte crepuscular de sua vida. Josué viu as guerras que o sereno da velhice traria: batalhas homéricas contra os banhos matinais e, talvez ainda mais difíceis, as lutas do seu corpo para erguer e movimentar a si mesmo, este corpo, decrépito em vida como não existiria um falecido pior; viu-se erguendo sua armadura orgânica, oxidada pelos anos de descaso, através das ruas e becos repletos de moribundos tão ou mais possivelmente maltratados pelas duras penas a que são submetidos os que levam a vida da qual a razão de Josué, por mais de meia existência, tentou livrá-lo; viu-se rejeitado, maltratado, renegado e mais: viu-se abandonado e esquecido e viu-se esvanecendo aos poucos, quem sabe durante um sono alcóolico ou sufocado nos próprios fluidos alcoolizados.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

As sem-voltas do amor

Amaram-se com a força do lirismo; amaram-se como se amam dois recém-namorados na insanidade dos carnavais; amaram-se ainda como se vêem as nuvens de um céu azul de fevereiro; no calor da tarde, amaram-se junto com a brisa morna do mar de sempre; amaram-se tanto quanto se viam as rolinhas nos fios de alta tensão à luz da lua quente; amaram-se mais que os amores de Helena; ainda mais, amaram-se e amaram-se infinitas vezes na eternidade dos verões do litoral. E na cadência do amor intenso, vasculharam pela história da humanidade amor parecido e só encontraram uma réstia de impressão, enterrada nos livros de fábulas e constataram, pálidos de cansaço, que não havia sequer um rastro de amor igual; perceberam então que estavam numa situação irreal e acima do amor consumado e depois das paixões juvenis: estavam muito mais além do amor.