sábado, 13 de janeiro de 2018

As cartas para Ana 19/∞

Oi, Ana. Só queria dizer isso. Na verdade, lembrando bem, acho que nunca disse essa expressão Oi, Ana. Por que será? 
Bom. Oi, Ana. Acordei agora, são quase quatro da manhã. Acho que tive um sonho ou uma crise de apneia. Sentado está dormindo nos meus pés, enrolado daquele jeito que as fotos clássicas dos gatos mostram, com a cauda ao redor do corpo. É um lindo gato. Lembro que você pegou ele e ficou mirando dentro dos olhos, aí disse que se sentia uma egípcia. Eu nunca sabia se você estava falando sério ou fazendo um piada. Mentira, é que na verdade tudo pra gente era piada - e também era sério, já te escuto emendar. Daí você ficou taciturna, com Sentado no colo na volta pra casa e eu sem entender. Tentava te animar - Atravessando os sinais vermelhos, conversando com pessoas aleatórias nos outros carros através da janela, dando ok para os motoristas de ônibus - mas você continuava cabisbaixa. Faltando alguns minutos pra chegar em casa você falou baixinho Sentado… e eu Oi? e você repetiu Sentado… com uma voz fininha, fininha, o queixo encostado no peito, alisando devagar as costas daquele gato tão feio, tão magro, tão remelento e tão triste. Quem tá sentado? eu perguntei e você olhou pra mim muito séria e disse Sentado, é o nome dele, e eu comecei a rir, claro, que espécie de nome era esse e você continuou séria, Ana. Eu parei de rir, fiquei sério. Ficamos os dois sérios, olhando a cara daquele gato tão feio e tão magro. Funguei um pouco o nariz, ele olhou pra mim. Olhei de volta. Continuei olhando. Ele miou e eu entendi. Sentado, repeti. Você repetiu também. Aquele gato jamais deveria ter outro nome, era claro pra mim agora. E ficamos os dois, estacionados na garagem do prédio, olhando o que viria a ser o gato mais lindo do mundo pensando, cada um na sua própria tristeza, que aquela era a última vez que estaríamos sentados no mesmo carro, na mesma vaga apertada de garagem, escutando um gato vira-latas miar de fome, com a certeza bruta de que não fazia o menor sentido adotarmos um gato se não viveríamos mais sob o mesmo teto.