sexta-feira, 22 de abril de 2011

Gabo me disse

Como se não bastasse despir-se aos prantos, com a velocidade de amantes subversivos, começaram então por despir-se à violência, cegamente. Despiram calças e vestidos e camisetas e roupas de baixo e quando já não podiam despir-se mais, despiram-se às dentadas, as peles um do outro, com urros e gemidos de animais ensandecidos.

Seu Nogueira - II

"Seguíamos pela estrada, ladeada por um lado pelo mar verde, com milhares de raios de sol refletidos na água, e pelo outro pelo restante da cidade. Eu, do lado da cidade, você do lado do mar. Sem conversar, dizíamos barbaridades obscenas e maravilhosas em diálogos de pensamento."

Era assim que eu devia ter contado esta história. Mas você não ia gostar. Então, eu me atenho aos fatos:

Seguíamos pela estrada, em direção à Jacumã, litoral sul. Eu disse a você que iríamos para um lugar que não era tão maravilhoso assim, mas que era importante porque eu achava importante, e que era bonito porque eu o achava bonito. E aí você me disse que concordava, que cada lugar não tinha sua própria beleza ou importância, mas nós é que o enchíamos de predicados. Foi ótimo você concordar comigo. Falamos de coisas realmente interessantes, durante os 25 minutos que durou aquela viagem, não foi? Você me contou o que realmente sentia, a respeito da sua vida, dos seus pais, da sua família, das suas saudades; me contou rapidamente sobre um ex-namorado, sobre como não se arrependia de nada, mas que não faria novamente. Foi quando eu perguntei "mas e se a pessoa que você é hoje tiver sido em parte moldada por esses dois anos? Eu digo em parte, mas é quase óbvio imaginar que esse tempo foi muito importante pra formação da sua personalidade." e aí você concordou novamente, e ficou pensativa uns segundos, olhando a estrada. Voce não sabe, mas nessa hora eu lancei um olhar levemente curioso pro seu antebraço esquerdo, com a cabeça recostada no apoio do banco. O sol bateu nele e refletiu minúsculos pelos dourados. Você tem uma mancha pequena, talvez de sol, talvez de nascença. E enquanto você pensava no que eu tinha dito, eu pensava em felicidade. Pensava que já tinha estado feliz em muitos momentos da minha vida, que sabia exatamente quando a estava sentindo e que naquele carro, naquela terça-feira, naquela manhã, eu estava feliz por ter cruzado com você perto da universidade. E aí você me disse "é verdade, mas se eu pudesse escolher, talvez fosse melhor ser outra pessoa, a ter vivido aqueles 2 anos daquela maneira". Perguntei se tinha sido tão ruim assim, e você me disse uma frase de uma sabedoria imensa (assim eu pensava) para alguém de 20 anos de idade: "Não, mas não foi bom o suficiente". Você não disse, nem eu perguntei, mas eu sabia: Bom o suficiente a ponto de ser importante, né? Concordamos ambos silenciosamente em não falar mais disso. E aí eu olhei pra você, de novo, com a cabeça recostada no apoio do banco. Você tinha um leve meio sorriso, quase tímido, quase imperceptível, quase invisível; mas eu percebi. Você também estava feliz.

domingo, 17 de abril de 2011

Fotografia I

Teve um momento, um instante claríssimo em que eu consegui vislumbrar alguma coisa. Você estava sentada, com o tronco um pouco virado para mim. O cotovelo apoiado na coxa cruzada por cima da outra; mão no queixo, a boca deixando entrever alguns dentes. Entre nós, alguém. E você olhava para algum ponto abaixo da linha do banco onde estávamos sentados. E não olhava. Digo assim paradoxalmente, porque os seus olhos é que estavam direcionados para lá, mas se notava perfeitamente que você não os focava em lugar algum no espaço à sua frente, e sim em algum ponto dentro da sua consciência. E parecia que esse olhar levava você completamente inerte para dentro deste lugar, interno. Mas o momento que eu quero descrever não é esse; é o seguinte. Que foi quando você saiu da consciência e veio para cá, olhando para o corpo que estava entre nós. Foi justo no espaço de tempo entre você sair de onde estava e ir para onde veio; como uma abertura nessa tal janela da alma, que são os olhos. Naquele instante em que você levantou o olhar, houve uma falha no tempo. E no espaço. E me atingiu em cheio, porque eu já estava olhando para você. Por um golpe de sorte, eu estava no lugar certo e na hora certa. Mas o que foi que eu vi? Até hoje não sei, foi como ver uma pintura abstrata, que me transmitiu uma sensação, não uma impressão. Minha única meia-explicação é que ali estava uma certeza, uma decisão sua; algo que você vinha pensando e de repente se deu conta; uma conclusão. Era uma certeza triste, imagino. Como se você tivesse percebido algo que não queria. Mas o quê? Não sei. E é angustiante porque nem mesmo você se lembra. Na verdade, você nem percebeu coisa alguma disso tudo.

Seu Nogueira - I

Lembra daquele dia em que você disse "foda-se"? E, por coincidência, me encontrou. Não sei se você já sabia que eu sou o tipo de pessoa que potencializa esses sentimentos de liberdade; talvez você só suspeitasse, antes daquele dia. Era uma terça-feira de um sol tão brilhante, tão forte e tão quente que não parecia junho. Eu estava indo para a faculdade e, naquela calçada ofuscante, você parou; do meu lado, no meio do trânsito. Você me perguntou se eu queria uma carona e eu disse que só se fosse para longe da universidade. Você sorriu, eu entrei e aí eu disse como estava bonito o dia, e que merecia uma praia; que não deveríamos estar ali, prontos para estacionarmos numa sala de aula pelas próximas 3 horas. Você concordou. Olhou para mim com uns olhos que até hoje não sei explicar como estavam, mas sei que estavam diferentes. Tinha alguma coisa entre dúvida e idéia, sabe? Como se você tivesse vontade de dizer algo mas na mesma hora, tivesse desistido. Eu perguntei o que você achava, e você disse que tinha uma prova, mas que se não tivesse não ia pensar duas vezes antes de ir pra praia. E eu perguntei qual era o problema de deixar pra depois, que já que estávamos ali, iríamos à praia. E completei com um "ora porra". Você riu meio triste, e disse que era complicado. Eu insisti. Você gostou de ser insistida, e eu insisti mais. Hoje em dia sei que você já estava convencida de ir à praia comigo, antes mesmo de me dar carona, e que você só queria saber até que ponto eu tinha vontade de sair com você. E aí você passou direto pelo portão de entrada e perguntou: "Para onde vamos?" E eu disse: "Faça a volta. Tenho uma idéia. Tem bastante gasolina?". Você disse que sim, e fez a rotatória. Seguimos direto e quando você perguntou onde iríamos, eu disse que para o litoral sul. Perguntei se você já tinha ido, você confirmou, mas disse que não conhecia muitas coisas. "Vou levar você em Seu Nogueira". Quando você me perguntou quem era, eu disse que você ia saber quando chegasse. "Tudo bem", você disse. Afinal, você sempre gostou de surpresas e, ultimamente, não tinha tido muita oportunidade para subverter seus próprios conceitos.


A continuar

sábado, 16 de abril de 2011

Il giorno, la notte e l'alba

As tardes não fazem muito sentido. Não tem nenhum apelo romântico, poético. São quentes, preguiçosas e, se não há sesta, não há nada de interessante. A tarde é relevante justamente quando se passa metade dela dormindo. Gosto de gastar a madrugada acordado. É prazeroso pela calma, pelo silêncio; não vai terminar nunca, essa é a impressão, já que não existem alarmes, buzinas, músicas, correrias, vozes apressadas; es decir: não tem tom de passagem de tempo, nada que indique a efemeridade das coisas serem só e somente só agora. De madrugada não é assim, não existe pressa, não existe a sucessão dos minutos. E quando chega a manhãzinha, chega um pouco do sono. E pouco depois, quando o mundo acorda, é hora de ir dormir. E dormir. E dormir. Acordar no fim da tarde e tomar um banho; comer. E se preparar mais uma vez para o outro mundo, que está aí, à noite, secreto e interno.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Clearheaded quote

Quando você morrer amanhã, estará satisfeito com a vida que tem levado?


Não tenho medo de morrer. Do que eu tenho medo é de não ser feliz até esse dia chegar; que pode ser hoje ou em 60 anos. Mas vai chegar. Reconhecer a mortalidade talvez seja o primeiro passo para ser feliz. Acho que as pessoas não tem, de fato, medo da morte. Se tivessem, não perderiam tanto tempo com o que não as deixa felizes. Não sei se eu posso lhe dizer para entender isso, talvez você só consiga enxergar depois de um tempo. Mas cuidado, porque é errado aprender com a vida; pode ser tarde demais. A gente deve aprender é com a morte, porque ela é quem ensina a viver.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Domingo

estás aqui
así seguirás
mientras yo
hombre del mar
camino entre estrellas

estrellas
qué un día se hundirán
junto conmigo
bajo el cielo,
bajo el cielo

quiero que me lleve el mar
para lejos de aquí

domingo, 3 de abril de 2011

"Eu sou um observador da vida. E uma cobaia de mim mesmo. Converto meus sentimentos em interpretações alheias, para me compreender. Assisto os sentimentos dos outros e os compreendo. Aos sentimentos e aos outros. Abstenho-me do meu sucesso para, em contrapartida, fracassar, de um outro ponto de vista que não o meu. Sucesso não é a conquista, mas a certeza de o saber."



Não posso continuar. Eu pensei me me jogar, é fato. Pular do precipício em direção ao chão - ou aos seus braços, quem saberia?. Mas não foi por medo. Medo não é ausência de coragem, ora. Na verdade, estas palavras nada têm a ver com a discussão. Estou falando é de racionalidade, de pensamentos, de atitudes e de conhecimento. Não o fazer é saber agir, apesar de o querer. E talvez eu pense que não agi porque eu preguei uma peça a mim mesmo. Talvez. Não o saberia dizer, é impossível. Não existem certezas, mas uma coisa muito próxima da certeza. Existe a sensação de decisão tomada, decisão correta tomada.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

As partes de Maria Estela

Lhe falta sexo, eu disse. Porque era quase óbvio, estava escrito na testa e nas coxas dela. É como se toda vez que eu a visse, soubesse que ela não quer declarações de amor, poeminhas cifrados, massagens de ouvido e etc. Ela quer é sexo, meu amigo, e eu sei disso. Pena é ela achar que sabe, mas não sabe. Se ela soubesse, estaria agora se contorcendo, com a mão entre as pernas, pensando no banho das 23:49. Talvez seja o que ela faça mesmo. E, se ela fizer, vai fazer pensando em mim. Não exclusivamente. Provavelmente pense naquele ex que lhe tirou a virgindade. Afinal, é seu referencial físico. É, eu sei disso também. Não precisa se assustar, relaxe e goze. No final, eu sei bem pra onde estou indo.

Canción de cuna

cuando me lleve el mar
cuando me lleve el mar
no tengo nadie a quién extrañar
cuando me lleve el mar

Conversando com o Gabo

Foi às 3 da tarde. De um golpe me assaltou. Explicar, de uma só vez, é impossível, porque tampouco eu sei o que era. O dia estava bonito, era normal, um dia de rotina simples, como havia alguns dias já estávamos acostumados. Não havia motivo para alarme, o céu estava limpo, com algumas nuvens preguiçosas; a brisa da tarde era aquela leve, talvez um pouco quente, morna, em que as folhas não balançam, mas se refrescam suavemente. Dentro de casa estava tudo normal, as duas velhas dormiam, uma na cadeira de balanço, movendo os pés por cima dos sonhos, num gesto automático e eterno, que me fazia pensar que até morta poderia estar se balançando; a outra, no sofá de estofado poeirento, demasiado quente para aquela hora, ressonando suavemente com aqueles sopros de ar entre os lábios a cada duas ou três inspirações. Eu estava na porta lateral da sala, de costas, observando, mas sem me prender exatamente às impressões; só observava. O gato também dormia, em cima da televisão. Nada fora do normal, exceto talvez pela insistência dele em mover as orelhas, como se estivesse espantando algum mosquito invisível. Mas não sei, acho que os gatos fazem isso sempre. Eu continuava parado, tentando escutar algum som visitante, algum barulho novo; talvez uma nova madeira se estalando ou uma parede se acomodando à outra. Era normal, à noite a casa se adaptava, se rearranjava nas fundações e gemia um pouco. Que casa não faz isso? Mas eu escutava e os sons eram os mesmos. Olhei para o relógio: 3 da tarde. Igual, também. Todos os dias ele marcava 3 da tarde e 3 da manhã, e eu sempre o via marcar. Já não me era estranho nos últimos doze anos, talvez fosse anormal se a partir de agora não o fizesse. Mas o fazia, então tudo estava bem. A sala parecia em ordem então. Fui à sala de jantar. As cadeiras estavam arrumadas, a mesa limpa e com o vaso no centro, sobre a toalha de mesa de renda, feita por uma das velhas. Era feia, eu pensava, mas não me fazia muita diferença; à hora de comer, sempre a trocavam por um pedaço de plástico. Os combogós estavam intactos, exalando a luz que vinha de fora, olhei por eles, vi o quintal grande, semi-abandonado. O cachorro dormia embaixo da mangueira, algumas mangas podres estavam no chão perto do seu focinho. Fiquei algum tempo olhando ele dormir. Era um cachorro muito bonito, grande e branco com algumas manchas marrons, o rabo comprido. Lembro muito do seu latido, característico e desesperado. Não importava a que horas latia ou por qual motivo, se era um gato vadio ou se estava feliz por ver a tigela de angú, latia desesperadamente. Gostava daquele latido. Mas, bem, ele estava dormindo e tudo estava normal. Voltei para a sala. Busquei reparar alguma diferença na disposição dos móveis, dos enfeites velhos, das lembranças dos inúmeros casamentos e mais numerosos ainda filhos. Uma estante só de lembranças dos outros. Estavam todas no lugar, como sempre. Olhei para as almofadas: no lugar. Olhei para as cadeiras: no lugar. Olhei para o gato novamente: no lugar. Olhei mais uma vez para cada uma das velhas: nos seus lugares. Meus olhos já estavam cansados de olhar, eu procurava por algo que não sabia o que era já fazia bastante tempo e queria dormir, mas resolvi uma última vez olhar para a parede e procurar o que estava fora do normal. Olhei para o quadro pintado pela velha que já morreu: uma praia com um barco solitário no cais, com cores serenas entre azul, verde e branco: no lugar. A fotografia monocromática muito velha, roída pelos cupins, cuja moldura já pendia um pouco: no lugar. O relógio centenário, envernizado muitas e muitas vezes pelo Doutor Aucélio: no lugar. Não entendia, estava tudo no lugar, nada havia saído dos seus respectivos lugares no último século e ainda assim havia alguma coisa errada. Continuei parado, esperando. Talvez fosse acontecer, talvez já tivesse acontecido. Esperei. As velhas, serenas, o relógio, tiquetateando; o gato dormitava. E então se espreguiçou. Esticou as patas, os dedos e os pelos, bocejou, encrispou levemente a língua, piscou uma vez e olhou para mim com os olhos transversais. Bem devagar levantou-se, esticou-se mais uma vez, arqueando as costas e saltou para o chão, graciosamente. Sentou-se, deu algumas lambidas no rabo e nos flancos; lambeu as patas e as esfregou nos olhos. Abluções felinas pós-sesta, pensei. E então caminhou lentamente até a velha da cadeira de balanço. Enquanto a cadeira balançava, buscou o melhor momento e saltou flutuantemente para o seu colo e deitou-se outra vez. Eu observava tudo e tudo parecia no lugar. Aproximei a vista da velha e constatei: já não respirava.