sexta-feira, 12 de junho de 2015

As cartas para Maria 1/1




Desde que me despedi de você no terminal, Maria, fico relembrando passagens do nosso tempo juntos, e aí me vem na cabeça coisas que eu diria ou teria feito. Deveria, por exemplo, ter chamado você de volta, da porta do vagão do trem, para dar um último beijo. Também queria ter dito como você estava bonita naquela última manhã, seminua sob minha boca, mas fiquei só pensando. Esqueci de dizer que adorava quando você se esticava toda para pegar alguma coisa no armário de cima - chá, pasta? -, enquanto cozinhava, e eu ficava olhando pra sua cintura descoberta - quando você estava com aquela calça e aquela camiseta regata pretas - ou para suas coxas e sua bunda - quando você estava com aquele vestido vermelho estampado. Será que você sabia disso? Talvez tivesse me escutado dizer com os olhos quando eu tentava, sem sucesso, olhar para outra coisa que não você. Esqueci de dizer que cada manhã em que você me despertava com seus dedos nos meus cabelos, de um jeito tão delicado como aquele, eu fingia dormir um pouco mais, só para que você continuasse com a mão ali. E não disse também que o ponto mais baixo do nosso tempo juntos era quando você me deixava sozinho para ir dormir. Queria ter dito para você ficar, Maria. Para você continuar deitada ali enquanto eu te via dormir. Mas não disse. Ou será que você escutou mesmo sem que eu tivesse dito? Quando estávamos no ponto de ônibus naquele parque; na hora que descansei minha cabeça no seu peito, Maria, e você deu um cheiro nos meus cabelos e encostou o rosto. Eu fiquei com vontade de abraçar você pela cintura. Mas deixei meus braços largados, porque sabia que, se o fizesse, acabaríamos onde não deveríamos. E eu estava seguro de que não era uma coisa boa a se fazer. Ou você crê que se nós tivéssemos nos abraçado, eu não lhe beijaria? E que quando a beijasse, você iria resistir? Ah, Maria, eu odeio estar tão seguro às vezes. Eu fui pra lá de propósito, sabe. Eu me postei ao lado do meio-fio para que você ficasse um pouco mais alta e se sentisse tentada a me abraçar. Também quando estávamos no terraço daquele hotel, de noite-madrugada. As trepadeiras nos cercando, as cadeiras de metal branco, o banco frio, uma garrafa de vinho - sempre tínhamos uma garrafa de vinho nas mãos ainda que, das minhas, uma delas tenha escapado. Seu sobretudo sobre nós. Eu queria que você tivesse deitado a cabeça no meu colo, para eu fazer um cafuné, daqueles que você gosta. Me diz Maria: as minhas mãos nos seus cabelos - e por baixo deles - não são o lugar onde você queria ter estado o tempo todo? 

Aqueles dias foram muito mais importantes do que eu achei que tinham sido. Naquele fim de tarde, naquele banco, naquele jardim daquele hotel, depois de subir, subir, subir, você estava tão bem aninhada no meu peito, com meu braço ao redor do seu pescoço e seu queixo e orelhas apoiados nele, que parecia natural. Achei fantástico, queria ter dito isso. Mas toda vez que eu pensava em dizer, Maria, me lembrava que era melhor não. Que você e esse seu cheiro natural tão gostoso, mesclado a um aroma bom - de shampoo e perfume levíssimos - não deveria estar, seria melhor que não estivesse, ao meu redor.

Quando você me chamou pra dar uma volta, durante aquele piquenique com seus amigos, eu entendi que você queria ficar sozinha comigo. Você estava meio embriagada. Inclusive, eu achei que, sempre que bebíamos, parecia que você queria ficar bêbada de propósito, porque assim ia achar mais fácil não resistir quando eu lhe. Quando eu lhe.

Como foi um pouco depois, nesse mesmo dia. Maria... você me disse que não tinha notado que eu queria lhe beijar quando estávamos naquele teto, mas você mentiu, claro. As mentiras inocentes, como essa, que você me contou, eu entendo que foram puro reflexo. Puro reflexo de quem não estava mais acostumada a ter tanta atenção. Não aquele desejo automático do cotidiano. De quem não precisa surpreender, pois tudo já foi dito. Para quem o "boa-noite" carrega atrelado um "eu te amo", quase parecendo sinônimos. Não são. Não são sinônimos. Ou seriam reflexos de mulher impossível? Bem dizer, impossibilitada de não mentir? De sentir plenamente. De entregar-se. Meus olhares para você, por deus - ah, deus, santos, seres de luz reencarnados e budas -, eram só para você. Quando eu a olhava, não via mais ninguém, não via nada além da sua boca, Maria. Que boca. Lembra meus dedos nela? Eu a tocava tão suavemente porque tinha medo de não sentir inteiramente a maciez dela. E você bem sabe como isso é verdade. Porque eu sei, Maria, eu sei que a simples lembrança do meu olhar lhe traz um arrepio bom. O mesmo arrepio de quando seus olhos estavam vendados. O seu corpo respondia instantaneamente aos meus toques. Seu corpo exalava um tesão incontrolável. Você é linda quando está excitada. Seus olhos se reviram, sua boca fica entreaberta, você se contorce e os músculos se contraem; você me olha impaciente, respirando rápido e pesado. Me desculpe se eu parecer invasivo agora, mas seu corpo não parecia ter sido tocado daquela maneira há muito tempo. Isso eu também não disse, mas meus dedos, minha boca, língua e meu hálito no seu rosto devem ter dito. Espero que sim.

Não pense que estou confundindo as coisas, Maria. Acho que, depois daquele tempo juntos, você sabe que eu sou assim. É o único aspecto canceriano que eu tenho. Já me disseram que eu sou o canceriano mais aquariano que há. Não sei, Maria. Eu só gosto que você saiba dessas coisas, entende? Sentir o espaço, certo? Saiba que eu senti você e todas aquelas coisas. Você era o espaço. Mas eu também tentava absorver cada detalhe dos becos - e os segredos dos pátios e portas fechadas -, das ruas - com seus carros apressados e os semáforos ambíguos -, das pessoas - impacientes, idosos poliglotas, atenciosas nos presenteando com vinho -, da comida - ah, nosso restaurante [você não deve ter percebido, mas assim que saímos de lá, eu passei meu braço em volta de você e, enquanto sentia seu braço na minha cintura, quase a beijei, sem perceber] -, da bebida - cervejas artesanais e vinhos baratos -, das estações - e seus nomes curiosos -, vagões e escadas rolantes de metrô - com ou sem cacos de vidro - , dos bancos de ônibus - e meu braço, desde o começo, insistindo em cair atrás de você -, da grama - sua cabeça deitada em mim, o frio -, das árvores de maquete tão características - que só me lembram você -, das ruínas de uma cidade feita puramente de pedras. Como o final daquela frase de Thoreau, "me dê a verdade". E a verdade é que eu precisava daqueles dias demais. Não tanto quanto você, eu sei, mas precisava bastante. Foi uma overdose fantástica de... de... de... de.

Maria, eu não tenho medo de ser sincero com as coisas que eu estou sentindo. Não acredito muito nas conceituações-padrão que as pessoas criaram, nas categorias que elas inventaram e tentam, desesperadamente, encaixar em suas vidas vazias. Isso, sim, eu lhe disse. Nosso tempo foi bom. Acho que isso é suficiente.

Mas há também coisas das quais me orgulho de termos feito. Sentir que não faltou absolutamente nada. Quando acertamos em cheio no nosso restaurante. Quando jogamos a moeda - na primeira e segunda vezes, tão decisivas. Quando deitamos naquela grama da ilha - as duas vezes. Como quando senti o gosto do pepperoni na sua boca, naquela escada - que era tão beco -, enquanto uma mulher esperava, sorridente, que terminássemos de nos beijar - ou enquanto uma nonna simpática lutava contra os degraus, ou quando aquele cachorro simpático nos cumprimentou. Você sentindo a água fria do mar nas pernas, levantando o vestido e eu tentando olhar para outra coisa - você também não percebeu, mas para desviar meus olhos à força eu resolvi lhe fotografar. Quando você dormiu nos meus braços, no trem, na viagem de volta. E quando você me deixou massagear seus pés. E tocar seus cabelos - ah, Maria, cafuné e mais cafuné. E lhe abraçar por trás, deitados - também quando deixou que eu lhe tocasse; cintura, quadril, coxas. Quando você se encaixou perfeitamente em mim e logo depois resistiu e desistiu. E voltou. 

Sabe o que mais me atrai em você, Maria? Seu desejo de viver coisas boas. Você ousou, se entregou, arriscou e - não tenho pudor nenhum de dizer - ganhou. Ainda que tenha se censurado algumas vezes, você fez o que muitas mulheres que eu conheço apenas sonham - e também mulheres que não conheço, como a que nos fotografou durante aquele piquenique, lembra? As pessoas estavam com inveja da gente. Quando estávamos no beijando ao som daquele violino solitário - puta que pariu - acho que as pessoas passavam e nos invejavam, apesar de parecer que estávamos sós - eu, você e o violinista.

Repasso os dias, hora a hora, às vezes. Para fixar bem, na memória, aqueles momentos. Para não esquecer. Terei outros dias assim, imagino. Mas serão com outras mulheres, outros cabelos, outros quadris. Merda, os seus quadris. E quando nos levantamos para ir embora da praia? Fomos lavar os pés e eu estava esperando os meus secarem. Minhas mãos na sua panturrilha e coxa esquerdas, por baixo do seu vestido cinza azul-esverdeado. Sua mão nos meus cabelos. Eu poderia ter feito sexo com você ali mesmo. Fico tentando guardar a textura daquela perna. Em momentos de alucinação - quer seja às 3 da madrugada, escrevendo cartas para Ana, quer seja às 3 da tarde, durante reuniões intermináveis para o debate de novas ideias no departamento -, ponho minha mão na boca. Passo meus lábios suavemente pelos meus dedos tentando encontrar, no eco da minha saudade, a textura das suas coxas. E dos seus cabelos. Me pego esticando o pescoço para, numa tentativa inútil de falsificar a realidade, sentir sua boca, lábios, língua e dentes devorando minha pele. Ah, Maria, me pergunto: quando é que seus dentes vão se cravar novamente em meu pescoço?



mediterrâneo, 2014


quarta-feira, 10 de junho de 2015

As partes de Luigi

Passando pela avenida 9 de julho, em direção a tirreno, numa viagem de 6 minutos, Francisco César traduziu assim meus vôos, meus vais, meus vous, meus nunca-vens. Per te, Maria, que viu no que deu se dar assim pra mim, perdoa se eu fui. Volto um dia, se tu quiser. Querer eu quero, mas num deu mais pra te dar o que tu queria. Se tu se der, de novo, tu vai ser o que tu quer, Maria: mia.

"De longe escuto o gemido da usina
Adeus, menina do meu padecer
Moer a cana dói - tirar a gema
Sobra bagaço nesse meu viver

Desde anteontem o relógio silencia
Pinga na pia o choro de quem é só
Moer a cana dói - tirar a gema
Era madeira, cupim roeu deixou pó

Adeus, meu povo pernambuco e paraíba
Vim nessa vida pra dizer adeus
Moer a cana dói - tirar a gema
Sol dai a luz, clareia os olhos meus

Em fogo morto vai o afago da saudade
Nem a metade do que queimou queima mais
Moer a cana dói - tirar a gema
Range a ferrugem e o mel do chorume cai"