segunda-feira, 29 de outubro de 2007

O peso da leveza

sapato branco com detalhes redondos verdes

comprei um sapato
assim, bonito, novo
um sapato meio ruivo, meio castanho
branquinho, bem esguio
tinha detalhes redondos
verdes

no começo, me coube
ficou bonito em mim, o sapato branco
eu ia para todos os lugares com ele
eu dormia com ele
eu tomava banho com ele
eu comia com ele
eu não entendia como alguém podia gostar tanto de um sapato

mas, paradoxalmente à metodologia dos calçados
foi-se apertando com o tempo
começou por incomodar o dedo mindinho
(comprimia o dedo vizinho)
depois foi fazendo uns calos leves
do lado
eu não entendia porque o sapato me incomodava
eu gostava tanto dele,
me sentia bem usando ele
me achava bonito com ele

eu gostava de usar aquele sapato
gostava tanto de usar aquele sapato
que deixei de usar
sandálias
que deixei de usar
tênis
que deixei de andar
descalço
e passei a usar só o sapato branco com detalhes redondos verdes

mas chegou o dia que o sapato novo
de tão novo,
não deu tempo de ficar velho
e começou a fazer calos no calcanhar

eu tentei toda a sorte de paliativos
meias mais grossas
meias mais finas
band-aids, curativos, gaze
e num dia de extrema decepção
até tentei conversar com ele,
saber por que fazia aquilo comigo
mas o calo incomodava por demais

e então, numa manhã de quinta-feira
(numa mesma quinta-feira ensolarada)
eu me desfiz do meu par de sapatos brancos com detalhes redondos verdes

(e isso me deixou mais triste do que eu pensei)

domingo, 28 de outubro de 2007

Quitéria

Sentou-se na cadeira de balanço de mogno centenário, e esperou pela morte em meio às ruínas de uma vida esquecida. Viu-se cercada por bonecas roídas pelas traças, e verteu lágrimas de desesperança ao sentir novamente os cheiros das boas-noites, que cresciam à medida que seus olhos inundavam os tacos de madeira, cobertos pelos restos das lembranças espalhadas displicentemente por toda a varanda. Pensou que morrer fosse uma dor, como das mordidas de dragões de outrora, enterrando-lhe os dentes da razão nos travesseiros à meia-noite, ao recordar os amores perdidos, as jogatinas vis, os despudores de adolescente. Recordou-o de tal forma que cercou-se como pôde com provas de coragem: abraçou as pernas, pendeu a cabeça para o lado esquerdo, cessou as batidas do coração pela metade e tragou o ar em volta pela última vez, numa tentativa irreal de cuspir pelas ventas os vermes entranhados nos pulmões.