sexta-feira, 1 de abril de 2011

Conversando com o Gabo

Foi às 3 da tarde. De um golpe me assaltou. Explicar, de uma só vez, é impossível, porque tampouco eu sei o que era. O dia estava bonito, era normal, um dia de rotina simples, como havia alguns dias já estávamos acostumados. Não havia motivo para alarme, o céu estava limpo, com algumas nuvens preguiçosas; a brisa da tarde era aquela leve, talvez um pouco quente, morna, em que as folhas não balançam, mas se refrescam suavemente. Dentro de casa estava tudo normal, as duas velhas dormiam, uma na cadeira de balanço, movendo os pés por cima dos sonhos, num gesto automático e eterno, que me fazia pensar que até morta poderia estar se balançando; a outra, no sofá de estofado poeirento, demasiado quente para aquela hora, ressonando suavemente com aqueles sopros de ar entre os lábios a cada duas ou três inspirações. Eu estava na porta lateral da sala, de costas, observando, mas sem me prender exatamente às impressões; só observava. O gato também dormia, em cima da televisão. Nada fora do normal, exceto talvez pela insistência dele em mover as orelhas, como se estivesse espantando algum mosquito invisível. Mas não sei, acho que os gatos fazem isso sempre. Eu continuava parado, tentando escutar algum som visitante, algum barulho novo; talvez uma nova madeira se estalando ou uma parede se acomodando à outra. Era normal, à noite a casa se adaptava, se rearranjava nas fundações e gemia um pouco. Que casa não faz isso? Mas eu escutava e os sons eram os mesmos. Olhei para o relógio: 3 da tarde. Igual, também. Todos os dias ele marcava 3 da tarde e 3 da manhã, e eu sempre o via marcar. Já não me era estranho nos últimos doze anos, talvez fosse anormal se a partir de agora não o fizesse. Mas o fazia, então tudo estava bem. A sala parecia em ordem então. Fui à sala de jantar. As cadeiras estavam arrumadas, a mesa limpa e com o vaso no centro, sobre a toalha de mesa de renda, feita por uma das velhas. Era feia, eu pensava, mas não me fazia muita diferença; à hora de comer, sempre a trocavam por um pedaço de plástico. Os combogós estavam intactos, exalando a luz que vinha de fora, olhei por eles, vi o quintal grande, semi-abandonado. O cachorro dormia embaixo da mangueira, algumas mangas podres estavam no chão perto do seu focinho. Fiquei algum tempo olhando ele dormir. Era um cachorro muito bonito, grande e branco com algumas manchas marrons, o rabo comprido. Lembro muito do seu latido, característico e desesperado. Não importava a que horas latia ou por qual motivo, se era um gato vadio ou se estava feliz por ver a tigela de angú, latia desesperadamente. Gostava daquele latido. Mas, bem, ele estava dormindo e tudo estava normal. Voltei para a sala. Busquei reparar alguma diferença na disposição dos móveis, dos enfeites velhos, das lembranças dos inúmeros casamentos e mais numerosos ainda filhos. Uma estante só de lembranças dos outros. Estavam todas no lugar, como sempre. Olhei para as almofadas: no lugar. Olhei para as cadeiras: no lugar. Olhei para o gato novamente: no lugar. Olhei mais uma vez para cada uma das velhas: nos seus lugares. Meus olhos já estavam cansados de olhar, eu procurava por algo que não sabia o que era já fazia bastante tempo e queria dormir, mas resolvi uma última vez olhar para a parede e procurar o que estava fora do normal. Olhei para o quadro pintado pela velha que já morreu: uma praia com um barco solitário no cais, com cores serenas entre azul, verde e branco: no lugar. A fotografia monocromática muito velha, roída pelos cupins, cuja moldura já pendia um pouco: no lugar. O relógio centenário, envernizado muitas e muitas vezes pelo Doutor Aucélio: no lugar. Não entendia, estava tudo no lugar, nada havia saído dos seus respectivos lugares no último século e ainda assim havia alguma coisa errada. Continuei parado, esperando. Talvez fosse acontecer, talvez já tivesse acontecido. Esperei. As velhas, serenas, o relógio, tiquetateando; o gato dormitava. E então se espreguiçou. Esticou as patas, os dedos e os pelos, bocejou, encrispou levemente a língua, piscou uma vez e olhou para mim com os olhos transversais. Bem devagar levantou-se, esticou-se mais uma vez, arqueando as costas e saltou para o chão, graciosamente. Sentou-se, deu algumas lambidas no rabo e nos flancos; lambeu as patas e as esfregou nos olhos. Abluções felinas pós-sesta, pensei. E então caminhou lentamente até a velha da cadeira de balanço. Enquanto a cadeira balançava, buscou o melhor momento e saltou flutuantemente para o seu colo e deitou-se outra vez. Eu observava tudo e tudo parecia no lugar. Aproximei a vista da velha e constatei: já não respirava.

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