quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Uma xícara de cólera.


Ela fez uma pausa, coçou o nariz. A rinite atacava. Sempre atacava durante as viagens. A voz feminina no sistema de som anunciava o próximo vôo. Eu continuava calado, olhando alternada e lentamente para ela e para as pessoas que passavam com malas, bolsas e casinhas de cachorro feitas de espuma. Pensava em como sabia de tudo que ela estava dizendo, e pensava em como estava surpreso por não estar triste, nem decepcionado, ou machucado. Três anos loucos de banhos de mar à noite, de ressacas homéricas e de viagens-surpresa, apenas pra matar a saudade. Três anos dos mais desastrosos jantares, do sexo mais aperreado e sem planos; a falta de plano foi o motto daquela relação. E agora ele havia se esgotado. Eu entendia cada palavra que ela dizia, mas a única coisa que pensava agora era nela. Me preocupava com ela, com a rinite. Ela ia pegar o vôo de volta? Havia acabado de descer, será que planejou isso? Será que iria ficar no Rio? Acho que sim, que ela iria ficar na casa de Renata. Não sabia e queria perguntar, mas ela começou a esbravejar novamente. Eu continuava sabendo exatamente do que ela estava falando, mas não conseguia tirar os olhos das duas narinas dela, tão vermelhas. Será que ela trouxe a loratadina? Ela não parava de falar. Alguma coisa sobre compromisso e confiança. Eu escutava, entendia cada insulto mas, ainda assim... Eu acho que tenho um pouco ainda, no carro. Antialérgico, digo. Agora ela falava sobre perder tempo e dinheiro, e passagens de avião e excesso de bagagem. Eu não sabia onde ela tinha arrumado tanta tralha. Eram só 3 dias. Ela sempre fazia isso. Da outra vez a gente acertou de se encontrar em Búzios depois de todo aquele frenesi de datas, horários, passagens, reservas e a porra toda. Feriadão de nossa senhora. Ela me chega com a merda da mala de rodinha faltando uma rodinha. Quebrou na saída, ela me disse. Claro. Uma caralhada de troço sem futuro. E ainda tinha que subir a ladeira da pousada, de pedra também. Porra, eu adorava aquela mulher, e ela tava ali na minha frente, com o nariz fodido, tinha pego dois vôos, jet lag pesado batendo na cabeça. E eu ali, escroto, pensando em mandar ela de volta. Foda. Mas puta que me pariu, eu não aguentava mais ficar olhando pra mão dela subindo e descendo pelo nariz e a cada fungada parecia que ia explodir - eu e o nariz. Os olhos dela iam ficando cada vez mais vermelhos e eu comecei a achar que ela estava falando em grego antigo. Não conseguia entender mais nada, não conseguia processar. Os olhos dela lacrimejavam tanto que eu estava em dúvidas se ela estava chorando ou se a rinite estava condensando ranho em lágrimas. Que bagunça. E todos nos olhavam. Eu procurava, com os olhos, um lugar pra me esconder e cada vez que meu olhar recaía sobre a placa que dizia ''sanitários'' ela batia na mesa, forte. O saleiro, porta-guardanapos e etc balançavam, faziam barulho; a colherinha saltava dentro da xícara e fazia quele barulho metálico. Eu olhava de novo pra ela. Das três primeiras vezes, meio assustado. Agora, já voltava a olhar pra ela com impaciência. Puta que me pariu, como eu queria um cigarro. Enquanto ela falava sobre a semana passada, no dia do aniversário do infeliz do cachorro. Aniversário de cachorro. Ela me carregou pro aniversário de um cachorro que nem era dela. Foda. Eu me senti penetra numa festa de cachorro. Enfim, ela me chamando de insensível e eu pensava justamente em escrever esse texto. Talvez eu seja insensível mesmo. Foda-se, eu não aguentava mais. Vou acender um cigarro aqui no saguão mesmo, na esperança de que algum segurança peça pra eu me retirar. Eu vou negar, ele vai dizer que vai ser forçado a me retirar. Vou mandar ele me retirar e, quando ele encostar em mim, vou dizer que ele não pode fazer isso. Vou causar uma confusão. Daí vou ser retirado à força e ela vai ficar lá, lacrimejando, com o nariz escorrendo e três malas coloridas. E eu lá fora, fumando meu cigarro e pensando onde foi parar a mulher que disse que me amava enquanto eu batia na bunda dela. Filho da puta insensível, foi o que ela disse agora. Consegui escutar. Talvez eu não acenda o cigarro, enfim. Gostaria de sentir pelo menos raiva, pelo menos algo. Algo que me impulsionasse a também discutir, a dizer o quanto ela era falsa, fútil e mentirosa; o quanto eu tive que aguentar as mentiras dela. Que ficou presa no trânsito, que a bateria tinha acabado, que Ivan era só amigo e tava ajudando a resolver as burocracias do financiamento. Eu era todo ouvidos agora, mas continuava sem entender porra nenhuma. Um monte de semântica ininteligível. Eu deixava ela falar, ficava olhando pra xícara. Analisando cada imperfeição. Tinha uma microrachadura. Eu estava me segurando, me forçando a não segurar aquela taza com as mãos e analisar melhor. Talvez tenha rachado enquanto alguém lavava com pressa, pra terminar de arrumar tudo e ir embora, fechar o café e ir pra casa, pegar ônibus, metrô, fazer baldeação na Sé e seguir pro Brás ou pra Vila Matilde. Enfim. Cansei de escrever.

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