quarta-feira, 9 de agosto de 2017

As cartas para Ana 17/∞

Ana, eu sei que esta deveria ser a última carta, que é o nosso - meu - acordo, e que eu deveria parar por aqui, eu sei. Não pense Ai, mais uma, meu deus, por que você não me esquece, não pense isso Ana, por favor. Mas é que eu não consegui absorver toda a sua energia, essa sua força. Eu tentei, você sabe que eu tentei.
Todas aquelas vezes em que você simplesmente queria ficar trancada no quarto, escutando PJ Harvey  - I'm begging, Jesus, please send his love to me - e escrevendo no seu diário - você ainda tem todos, desde os 9 anos -, e aí você para de escrever, se levanta, dança um pouco sozinha no quarto, olha pela janela, acende um cigarro, repara no edifício em frente - um monte de janelinhas, cada uma com vida própria - imaginando quem são aquelas pessoas dentro daquelas salas - e você até conhece uma delas, Moacir, o dono da padaria, e consegue vê-lo através da janela fazendo polichinelos às duas da manhã. Você apaga o cigarro no trilho de metal da janela - que você adotou como cinzeiro -  e volta pra cama, continua a escrever no diário. Nada disso é mistério para mim, é claro, porque eu sempre vi você fazendo essas coisas. Lembra quando chegamos bêbados às quatro e doze - guardamos essa hora pra sempre - e achamos que Moacir estava atrasado pro pão do dia e combinamos de gritar juntos moacir, no três? E quando cheguei no dois você segurou meu braço e disse Peraí, mas é um dois três moacir ou um dois três e moacir? e eu disse um dois três moacir, você disse ok e lá fomos nós um dois e você segurou meu braço novamente e perguntou Mas vai ser um moacir curto tipo moacir! ou um moacir longo tipo moaciiiiiir? Eu falei que é óbvio, Ana, é óbvio que seria um moacir longo, segurando no i porque fazia mais sentido e você concordou bêbada, daquele jeito bem infantil, fechando os olhos, apertando os lábios e acenando exageradamente com a cabeça, para cima e para baixo e fomos de novo um dois três moaciiiiiiir mas você não chegou a terminar, lembra, porque você começou a rir, inclusive você deu aquelas risadas meio presas que escapam como um cuspe, e acho que até hoje deve ter um pedaço de esfiha de carne mastigada naquele vidro. 
Ana, você era assim, talvez até seja, infelizmente eu não sei mais, mas espero que sim. Talvez você fosse assim porque você estava comigo e talvez você até olhe para trás e pense Que ridícula eu era. Talvez... gostaria de saber. Minto, não gostaria. Esse mundo é meu, essa vida é minha, esse passado é meu. Vou deixá-lo como está.
Mas sim, a sua força. Você sempre teve isso de não ceder a certos impulsos, principalmente se estes impulsos fossem causados por outra pessoa. Não. Você seguia lá, firme, irredutível. Acho que você maturou essa característica enquanto dava as aulas de inglês e os pirralhos se matavam ou faziam as chantagens emocionais típicas das crianças do Leblon. Quando sua mãe tinha aqueles acessos de cobrança que antes lhe irritavam tanto e depois você simplesmente a deixava falando sozinha e eu dizia Ana, ligue para ela e você dizia que não, que era exatamente isso que ela queria e que enfim... As coisas entre você e a sua mãe eu desisti de entender pouco tempo depois desse dia.
Mas então, a sua força. Você não deixava mais as pequenas coisas cotidianas te abalarem. O vazamento eterno do banheiro que era não-consertado a prazo, aquele azulejo mal colocado justo na entrada do apartamento e que, desde o primeiro dia que eu tropecei, você disse que estava brigando com Messias, pra que ele consertasse e até a última vez que eu passei por cima dele - não tropecei, afinal - e você nesse ponto já tinha há muito desistido de brigar com o pobre Messias e agora simplesmente ironizava toda a situação. Aquele dia maravilhoso, tempos depois que você já tinha decidido que não era Messias quem tinha culpa e sim Dona Zélia. E aí você foi com o pé enfaixado na reunião de condomínio, sentou na primeira cadeira e ficou com as pernas cruzadas, balançando o pé. Dona Zélia perguntou - Como se aquela vaca se importasse, você disse - O que foi isso minha filha e você disse que tinha sido a porra do azulejo. Lembro que você disse que ela falou alguma coisa sobre reforma do prédio, sobre empresa de prestação de serviços e daí você não lembrava o resto porque a raiva foi tanta que você esqueceu a história do pé e saiu bufando da sala. Lembro perfeitamente da gente sentados no sofá, tomando conhaque, eu com a mão no seu pé enfaixado e estávamos considerando a possibilidade de deixar assim mesmo pra que você não fosse trabalhar e foi nesse dia que você decidiu parar de se preocupar com essas coisas. Acho que você nem sabe que foi exatamente nesse dia, e provavelmente está irritada agora porque eu insisto em dizer como você se sente e você odeia que eu faça isso.
É por isso, Ana, por isso e também por várias outras coisas, óbvio, que eu decidi que não vou parar mais nunca de escrever para você. Simplesmente não vou. Me rendi a mim mesmo, me rendi à minha tristeza, à minha saudade e à minha loucura. Essa mesmo. Eu volto pra você sempre que escrevo e tanto sabíamos disso que tínhamos decidido que eu escreveria somente até certo ponto. Porque você sabia que me faria bem - até certo ponto. Mas Ana, eu quero que tudo isso se foda - até certo ponto. Vou continuar escrevendo, vou continuar enlouquecendo e vou continuar insistindo em nós - até certo ponto.










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