domingo, 20 de janeiro de 2008

Alaridos de além-túmulo

Lutou por anos a fio, quando lhe chegou a velhice, contra as ferrugens nos cotovelos, nos joelhos e nos ombros; nas dobradiças dos dedos foi onde sentiu mais o golpe dos anos. Continuava lembrando-se das exigências naturais que o seu corpo fazia, apenas para a tarefa simples de levar um punhado de arroz à boca: os dedos já não obedeciam, e grunhiam a cada milímetro do esforço e as mãos, descarnadas, não eram mais do que um acumulado de tendões oxidados e ossos empoeirados em carne viva.
Bastou-lhe morrer para perceber, com satisfação ingrata, que as as dores das dobras não desapareciam e pior, os sons que os ossos faziam ao rasparem uns nos outros, eram agora tão intensos, que enlouqueciam os vivos e despertavam outros mortos, que padeciam de uma tranquilidade sacra, enterrados nas lápides vizinhas. Como se não lhe bastasse agora arrancar tufos de cabelos para improvisar tampões nos ouvidos, evitava ao máximo mover a sua carcaça, mesmo que alguns milímetros, para não sentir arrepiando os parcos pêlos da nuca enegrecida. Temia os arredores, pois não sabia se era apenas sua a certeza de que não se morre depois que se morre e mais: percebeu que o que ele temia não era o ruído dos ossos, o carcomer dos insetos, o rastejar dos vermes, o odor das carnes, ou o bolor do ataúde lacrado. Era, sim, o pavor da eternidade.

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