terça-feira, 13 de novembro de 2018

Conversando com Matilde



Matilde fez-me querer a escrita uma vez mais
uso esta palavra com a conotação mais clara possível:
desejar, ansiar, almejar, aspirar, cobiçar.

o anelo dos dias

leio o que escrevo e acredito, aceito.
leio com sotaque português Matilde me lendo
escuta, Maurício, o que te digo: vem

o amor é um espelho infinito,
o contrário do fim

tem alguma coisa de eterno na fala dela,
não o quê, mas o como, o é

fui mais de uma vez até lá, à beira da praia
colhi conchas e as devolvi, virgens
serão conchas por muitos anos mais

e ainda Matilde conta, bem ao pé do meu ouvido
sobre a solidão das baleias, e sei lá
quem fala sobre a solidão das baleias com tanto twitter

passa um rapaz com uma caixa de isopor nos ombros
grita camarão é 3 por 10, ovo de codorna também,
bronzeador, protetor, carregador portátil

somos feitos de matéria escorregadia, sim

eu parecia até saber falar dessas coisas, porque eu li
eu lia, né, agora nem isso
também escrevia umas quantas linhas na maior pretensão de ser quem eu descrevia
até mesmo estas linhas, que parecem poesia eram somente uma prosa conturbada
e agora, fragmentada em versos, pra tentar dizer à Matilde que
enfim

eu quis a escrita mais uma vez,

pra escrever teu nome, 70 vezes seguidas
e ao lado das 70 vezes seguidas,
totalizando outras 70 vezes seguidas,
um sonoro e brilhante
- como o ínicio de cry baby -

adeus.

terça-feira, 6 de março de 2018

As cartas para Ana 21/∞

A luz se apagava e eu lhe via, Ana. Era sempre assim: O escuro, a fresta da porta, um flash de farol, o neon esverdeado. E aí eu lhe via. Ficava acocorado na esquina da parede; aquela junção perto da janela onde a gente não colocou nenhum móvel, nenhuma planta, nenhuma cadeira. E aí eu ficava lá, agachado como um menininho de castigo, fumando meu cigarro o mais lentamente possível, olhando pro sofá onde você deitava com as pernas cruzadas em cima do pufe, comendo pipoca com molho tabasco. A luz apagada, eu assistindo você apoiando a tigela de pipoca no bucho, rindo alto como você sempre riu, assistindo cartoon network. 
O escuro me trazia uma solidão que eu adorava sentir, Ana. Era uma solidão acompanhada de você, sabe como é. Era eu sozinho mas sentindo a sua presença. Em noites assim, de escuros e neon, eu costumava me esconder naquela esquininha, bem do lado da tomada que perdeu a tampa e nós nunca consertamos. Ficávamos eu, meu cigarro e uma tomada descoberta, lembrando de quando você chegou a primeira vez naquele apartamento.
Era Março, seis, Ana. Lembra? Bêbados feito Zeca Pagodinho no quintal de casa, tropeçamos na porta. Você se jogou no sofá, como se fizesse isso sempre, como se fosse seu. Eu percebi isso na hora e me senti feliz. Ficou largada lá, rindo não sei de quê. A porta ficou aberta. Fui acender a luz da cozinha, pegar uma água. Deixei a geladeira aberta, trouxe uma garrafa de água de plástico pra você. Você me perguntou se era vodka, eu disse Claro, bebe. Você bebeu e jogou a garrafa no chão, Seu puto isso é água, e rimos. Deitei na rede. Escutava você respirando e gemendo, Ai ai tô muito louca. 
Dormimos assim. Ou melhor, desmaiamos assim. No dia seguinte, eu levantei, você continuava largada com o pé pra fora do sofá, os cabelos meio dourados, meio marrons, cobrindo parte do rosto, a mão apoiando o queixo. Eu só conseguia pensar E agora. Me levantei devagar, fazendo um esforço sobrenatural pra sair daquela rede; mijei. Fui na cozinha passar um café. A água esquentando, eu encostado na parede da sala, olhando você deitada. Seu vestido levantado, deixando as coxas descobertas, era lindo. A luz de manhãzinha deixava um rastro de brilho por entre as frestas das cortinas, iluminando sua perna, longitudinalmente. Fui lavar as canecas, fiz barulho. Você acordou, olhou por entre os cabelos. Se espreguiçou. E aí você disse a frase que seria nosso bom dia pelos próximos quatro anos, onze meses e dois dias, segundo as minhas contas: Dor de cabeça da porra.

domingo, 25 de fevereiro de 2018

As cartas para Ana 20/∞

Preciso ser cuidado, Ana. Preciso deixar que alguém trate as feridas que se abriram durante todo esse tempo, e que eu nunca deixei que sarassem. Existem cortes ainda abertos na minha mente, que escorrem sangue, que latejam, que pulsam com a mesma intensidade de sempre, desde o dia em que foram feitos. Na minha mente se acumulam anos de ideias e pensamentos tóxicos, de perguntas sem respostas e pior, ainda muitas respostas flutuando sem mais alguém para recebe-las. Não, Ana, eu não estou bem e preciso ser cuidado. Há tanta vida por viver apodrecida em mim, corroendo meu coração e minha sanidade. Tudo que deveria ser dito, feito, vivido, e que não foi; aqui, em mim, se diluindo em um veneno onipresente, corpo e alma, cujos efeitos começam a transparecer para o mundo. Me sinto dormente, estático. Num eterno loop, sem começo nem fim, sem meio também. Preciso ser cuidado, Ana. Mas, ao mesmo tempo que desejo esse cuidado, desejo também não incomodar. Não queria incomodar ninguém com minhas agruras, Ana. 
Acho que posso vomitar tudo isso para você, certo, Ana? Acho que sim. Há tanto que você se foi e, quer dizer, você tem outra vida sendo vivida - e provavelmente sendo gerada. Então, já passamos de adeus, estamos no limbo do esquecimento. Não. Passamos dele também. Estamos num além-algo. Mas isso é bom, eu acho.
Queria viver em Zihuatanejo, sem passado, nem futuro. Somente um ciclo diário de sobrevivência fisiológica, sem batalhas existenciais; felicidade é viver sem ontem nem amanhã, Ana. E aqui tem muito ainda. Prevejo muitos amanhãs cheios de ontem.

sábado, 13 de janeiro de 2018

As cartas para Ana 19/∞

Oi, Ana. Só queria dizer isso. Na verdade, lembrando bem, acho que nunca disse essa expressão Oi, Ana. Por que será? 
Bom. Oi, Ana. Acordei agora, são quase quatro da manhã. Acho que tive um sonho ou uma crise de apneia. Sentado está dormindo nos meus pés, enrolado daquele jeito que as fotos clássicas dos gatos mostram, com a cauda ao redor do corpo. É um lindo gato. Lembro que você pegou ele e ficou mirando dentro dos olhos, aí disse que se sentia uma egípcia. Eu nunca sabia se você estava falando sério ou fazendo um piada. Mentira, é que na verdade tudo pra gente era piada - e também era sério, já te escuto emendar. Daí você ficou taciturna, com Sentado no colo na volta pra casa e eu sem entender. Tentava te animar - Atravessando os sinais vermelhos, conversando com pessoas aleatórias nos outros carros através da janela, dando ok para os motoristas de ônibus - mas você continuava cabisbaixa. Faltando alguns minutos pra chegar em casa você falou baixinho Sentado… e eu Oi? e você repetiu Sentado… com uma voz fininha, fininha, o queixo encostado no peito, alisando devagar as costas daquele gato tão feio, tão magro, tão remelento e tão triste. Quem tá sentado? eu perguntei e você olhou pra mim muito séria e disse Sentado, é o nome dele, e eu comecei a rir, claro, que espécie de nome era esse e você continuou séria, Ana. Eu parei de rir, fiquei sério. Ficamos os dois sérios, olhando a cara daquele gato tão feio e tão magro. Funguei um pouco o nariz, ele olhou pra mim. Olhei de volta. Continuei olhando. Ele miou e eu entendi. Sentado, repeti. Você repetiu também. Aquele gato jamais deveria ter outro nome, era claro pra mim agora. E ficamos os dois, estacionados na garagem do prédio, olhando o que viria a ser o gato mais lindo do mundo pensando, cada um na sua própria tristeza, que aquela era a última vez que estaríamos sentados no mesmo carro, na mesma vaga apertada de garagem, escutando um gato vira-latas miar de fome, com a certeza bruta de que não fazia o menor sentido adotarmos um gato se não viveríamos mais sob o mesmo teto.

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

As cartas para Ana 18/∞

Andei vendo você por todas estas cidades, Ana. Tenho andado bastante, tenho visto bastante. Menos as cidades que você. Outro dia comprei um dogão na Sé, aqueles com purê - que você sempre achou tão normal e eu tão absurdo mas tão gostoso - e quando me virei, achei que você vinha entrando com uma dessas microgarrafas de suco. Me assustei, derrubei a maionese e quando fui me abaixar pra pegar o pote, derrubei os óculos que estavam pendurados na gola da minha camisa. Foi tudo um desastre, Ana. Me senti mais desastrado do que o normal. Foi a mesma sensação de desastre de quando estávamos caminhando juntos - mentira, claro, era eu sozinho, como sempre - em Skagway e pisei numa merda de cachorro. Você achou engraçado e reclamou do cheiro de bosta o dia inteiro, inclusive depois de eu lavar meu sapato no riacho - numa água fria e deliciosa.
Vejo sempre você. Não importa, mesmo, afinal nunca é você. Agora estou aqui numa biblioteca pública em Fort-de-France e escrevendo para você, que tanto gosta do calor. Você sabe que não me dou bem com essas temperaturas altas, fico rosado e molhado de suor.
Te mandei um postal. O mais brega que consegui achar, do jeito que você gosta. Tomara que você nunca receba, de novo. Sempre que mando um postal pra você me arrependo e me sinto ridículo porque você não é a única que vai ver. Sempre me senti assim, Ana. Você tão sociável, tão libriana com ascendente em aquário e eu tão quieto, sempre preferindo eu-e-você aos outros. Não posso reclamar, você entendia bastante quando eu simplesmente dizia ''tou a fim não, vai você''. E no começo eu achava perfeito, mas depois comecei a ficar preocupado e achar que, afinal das contas, você estava se sentindo mal por não ter alguém no mesmo ritmo. Ai garoto, para de teorizar, você ia dizer. Sempre me dizendo pra parar de pensar demais. 
Ana, eu ainda penso demais, penso muito mais do que antes. E sempre chego à mesma conclusão. Estou pensando demais.

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Primeiro de setembro

Me disse que eu sou o que tu viu; eu disse que não, que sou outra pessoa, bem melhor. Ah, se tu escutasse… mas tem nada não, visse? Tá tudo bem, tou todo bem, eu te disse. Mentira, disse não. É porque não tou, entendesse? Tu fosse embora bem antes de ir, e muito ainda antes que eu notasse. Depois que eu notei, já era tarde, eu já tava numa mesmice, bem diferente da tua. Entrei na tua, tu saísse, eu fiquei. E tou aqui até agora, sem saber porque tu num ficasse. Mentira, sei sim. Tu num ficasse porque tu percebesse que era melhor se tu tivesse sozinha, sem ninguém além daquela coisa ocasional com quem quer que fosse. Teu negócio não era a minha mesmice, não era mesmo. Eu devia ter sido melhor, eu sei disso. Só que eu sei que sou melhor, sabe como é? Eu sei disso. Mas tu começasse a me tratar que nem tratasse ele: na coleguice. Te lembra? Depois daquele dia que tu não dormisse comigo, eu me peguei pensando se tu ainda queria que desse. Depois me dei conta que não, tu já tinha saído dessa. E eu lá, deitado de bruço, imaginando que se tu deitasse e eu pudesse mudar o que tu pensasse… mas de novo, já era tarde e tu nunca mais falasse disso, até hoje. E eu aqui esperando; tu já pensasse? Homem feito, morrendo de saudade e escrevendo essa pieguice, numa esperança coberta de ilusão e salpicada com criancisse. É foda, visse? Eu tava no caminho do laço, tu disse que tava dentro do nó do laço, e de repente, como se a gente caísse num poço, não tem mais nada disso. É tenso, eu queria ter sido diferente, mas agora já era, tu já olhasse aqui dentro e, aparentemente, não gostasse do que visse. O pior que mesmo que eu tentasse, não ia dar e, mesmo que eu conseguisse, não ia segurar e, na possibilidade escassa de que eu mantivesse isso, o cansaço ia chegar e eu ia voltar a essa tristeza seca do começo. Tu se decepcionasse, e eu mais ainda. Comigo, sabe? Mas enfim.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Residência II

assentei com as próprias mãos
um quarto em teu pensar
no teu seio, fiz repouso
deitei, cômodo
e criei, mudo
o que sentia, só
no reboco, parede branca
buraco de armador
ruído de rede
o ranger: saudade atroz







segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Os bilhetes para Maurício 5/622

eu vi. a bicha é mais bonita que a rapa do tacho de canjica.

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Uma xícara de cólera.


Ela fez uma pausa, coçou o nariz. A rinite atacava. Sempre atacava durante as viagens. A voz feminina no sistema de som anunciava o próximo vôo. Eu continuava calado, olhando alternada e lentamente para ela e para as pessoas que passavam com malas, bolsas e casinhas de cachorro feitas de espuma. Pensava em como sabia de tudo que ela estava dizendo, e pensava em como estava surpreso por não estar triste, nem decepcionado, ou machucado. Três anos loucos de banhos de mar à noite, de ressacas homéricas e de viagens-surpresa, apenas pra matar a saudade. Três anos dos mais desastrosos jantares, do sexo mais aperreado e sem planos; a falta de plano foi o motto daquela relação. E agora ele havia se esgotado. Eu entendia cada palavra que ela dizia, mas a única coisa que pensava agora era nela. Me preocupava com ela, com a rinite. Ela ia pegar o vôo de volta? Havia acabado de descer, será que planejou isso? Será que iria ficar no Rio? Acho que sim, que ela iria ficar na casa de Renata. Não sabia e queria perguntar, mas ela começou a esbravejar novamente. Eu continuava sabendo exatamente do que ela estava falando, mas não conseguia tirar os olhos das duas narinas dela, tão vermelhas. Será que ela trouxe a loratadina? Ela não parava de falar. Alguma coisa sobre compromisso e confiança. Eu escutava, entendia cada insulto mas, ainda assim... Eu acho que tenho um pouco ainda, no carro. Antialérgico, digo. Agora ela falava sobre perder tempo e dinheiro, e passagens de avião e excesso de bagagem. Eu não sabia onde ela tinha arrumado tanta tralha. Eram só 3 dias. Ela sempre fazia isso. Da outra vez a gente acertou de se encontrar em Búzios depois de todo aquele frenesi de datas, horários, passagens, reservas e a porra toda. Feriadão de nossa senhora. Ela me chega com a merda da mala de rodinha faltando uma rodinha. Quebrou na saída, ela me disse. Claro. Uma caralhada de troço sem futuro. E ainda tinha que subir a ladeira da pousada, de pedra também. Porra, eu adorava aquela mulher, e ela tava ali na minha frente, com o nariz fodido, tinha pego dois vôos, jet lag pesado batendo na cabeça. E eu ali, escroto, pensando em mandar ela de volta. Foda. Mas puta que me pariu, eu não aguentava mais ficar olhando pra mão dela subindo e descendo pelo nariz e a cada fungada parecia que ia explodir - eu e o nariz. Os olhos dela iam ficando cada vez mais vermelhos e eu comecei a achar que ela estava falando em grego antigo. Não conseguia entender mais nada, não conseguia processar. Os olhos dela lacrimejavam tanto que eu estava em dúvidas se ela estava chorando ou se a rinite estava condensando ranho em lágrimas. Que bagunça. E todos nos olhavam. Eu procurava, com os olhos, um lugar pra me esconder e cada vez que meu olhar recaía sobre a placa que dizia ''sanitários'' ela batia na mesa, forte. O saleiro, porta-guardanapos e etc balançavam, faziam barulho; a colherinha saltava dentro da xícara e fazia quele barulho metálico. Eu olhava de novo pra ela. Das três primeiras vezes, meio assustado. Agora, já voltava a olhar pra ela com impaciência. Puta que me pariu, como eu queria um cigarro. Enquanto ela falava sobre a semana passada, no dia do aniversário do infeliz do cachorro. Aniversário de cachorro. Ela me carregou pro aniversário de um cachorro que nem era dela. Foda. Eu me senti penetra numa festa de cachorro. Enfim, ela me chamando de insensível e eu pensava justamente em escrever esse texto. Talvez eu seja insensível mesmo. Foda-se, eu não aguentava mais. Vou acender um cigarro aqui no saguão mesmo, na esperança de que algum segurança peça pra eu me retirar. Eu vou negar, ele vai dizer que vai ser forçado a me retirar. Vou mandar ele me retirar e, quando ele encostar em mim, vou dizer que ele não pode fazer isso. Vou causar uma confusão. Daí vou ser retirado à força e ela vai ficar lá, lacrimejando, com o nariz escorrendo e três malas coloridas. E eu lá fora, fumando meu cigarro e pensando onde foi parar a mulher que disse que me amava enquanto eu batia na bunda dela. Filho da puta insensível, foi o que ela disse agora. Consegui escutar. Talvez eu não acenda o cigarro, enfim. Gostaria de sentir pelo menos raiva, pelo menos algo. Algo que me impulsionasse a também discutir, a dizer o quanto ela era falsa, fútil e mentirosa; o quanto eu tive que aguentar as mentiras dela. Que ficou presa no trânsito, que a bateria tinha acabado, que Ivan era só amigo e tava ajudando a resolver as burocracias do financiamento. Eu era todo ouvidos agora, mas continuava sem entender porra nenhuma. Um monte de semântica ininteligível. Eu deixava ela falar, ficava olhando pra xícara. Analisando cada imperfeição. Tinha uma microrachadura. Eu estava me segurando, me forçando a não segurar aquela taza com as mãos e analisar melhor. Talvez tenha rachado enquanto alguém lavava com pressa, pra terminar de arrumar tudo e ir embora, fechar o café e ir pra casa, pegar ônibus, metrô, fazer baldeação na Sé e seguir pro Brás ou pra Vila Matilde. Enfim. Cansei de escrever.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Conversando com Lúcio

você me lançou de volta;
eu, garrafa ao mar.
você me desenterrou à beira da praia
numa madrugada molhada
eu, garrafa ao mar
no limiar do esquecimento
apenas uma réstia de vidro aparente
você me pegou em seus dedos finos
anéis, bracelete, pulseira e búzio
eu, garrafa ao mar
pude sentir cada olhar seu
admirando cada mancha
arranhão, lasca, sujeira, rachadura
você me acariciou, afagou
me girou nas mãos
a mim, garrafa ao mar
e tentou enxergar por entre
o opaco de tantos anos
sob a maresia, o sol, as chuvas
areia, pedras e cascos de velhas jangadas
um opaco de tantos anos vindo
e indo por mares sem glória
eu, garrafa ao mar
depois de todo esse tempo à deriva
mas muito mais tempo sob a areia
estava entre as suas mãos
sentia cada toque, ainda que sutil
ainda que escasso, ainda que não-merecido
na tentativa inútil e vã
de enxergar o que havia dentro
mas eu, garrafa ao mar
era um vidro quase oco, quase vazio
quase calado, quase sem mensagem
e  à única luz da noite
num minúsculo papel amarelado e roto
gasto, esmorecido, desbotado
no limiar da  dissolução
se lia:
me lance de volta ao mar



quarta-feira, 9 de agosto de 2017

As cartas para Ana 17/∞

Ana, eu sei que esta deveria ser a última carta, que é o nosso - meu - acordo, e que eu deveria parar por aqui, eu sei. Não pense Ai, mais uma, meu deus, por que você não me esquece, não pense isso Ana, por favor. Mas é que eu não consegui absorver toda a sua energia, essa sua força. Eu tentei, você sabe que eu tentei.
Todas aquelas vezes em que você simplesmente queria ficar trancada no quarto, escutando PJ Harvey  - I'm begging, Jesus, please send his love to me - e escrevendo no seu diário - você ainda tem todos, desde os 9 anos -, e aí você para de escrever, se levanta, dança um pouco sozinha no quarto, olha pela janela, acende um cigarro, repara no edifício em frente - um monte de janelinhas, cada uma com vida própria - imaginando quem são aquelas pessoas dentro daquelas salas - e você até conhece uma delas, Moacir, o dono da padaria, e consegue vê-lo através da janela fazendo polichinelos às duas da manhã. Você apaga o cigarro no trilho de metal da janela - que você adotou como cinzeiro -  e volta pra cama, continua a escrever no diário. Nada disso é mistério para mim, é claro, porque eu sempre vi você fazendo essas coisas. Lembra quando chegamos bêbados às quatro e doze - guardamos essa hora pra sempre - e achamos que Moacir estava atrasado pro pão do dia e combinamos de gritar juntos moacir, no três? E quando cheguei no dois você segurou meu braço e disse Peraí, mas é um dois três moacir ou um dois três e moacir? e eu disse um dois três moacir, você disse ok e lá fomos nós um dois e você segurou meu braço novamente e perguntou Mas vai ser um moacir curto tipo moacir! ou um moacir longo tipo moaciiiiiir? Eu falei que é óbvio, Ana, é óbvio que seria um moacir longo, segurando no i porque fazia mais sentido e você concordou bêbada, daquele jeito bem infantil, fechando os olhos, apertando os lábios e acenando exageradamente com a cabeça, para cima e para baixo e fomos de novo um dois três moaciiiiiiir mas você não chegou a terminar, lembra, porque você começou a rir, inclusive você deu aquelas risadas meio presas que escapam como um cuspe, e acho que até hoje deve ter um pedaço de esfiha de carne mastigada naquele vidro. 
Ana, você era assim, talvez até seja, infelizmente eu não sei mais, mas espero que sim. Talvez você fosse assim porque você estava comigo e talvez você até olhe para trás e pense Que ridícula eu era. Talvez... gostaria de saber. Minto, não gostaria. Esse mundo é meu, essa vida é minha, esse passado é meu. Vou deixá-lo como está.
Mas sim, a sua força. Você sempre teve isso de não ceder a certos impulsos, principalmente se estes impulsos fossem causados por outra pessoa. Não. Você seguia lá, firme, irredutível. Acho que você maturou essa característica enquanto dava as aulas de inglês e os pirralhos se matavam ou faziam as chantagens emocionais típicas das crianças do Leblon. Quando sua mãe tinha aqueles acessos de cobrança que antes lhe irritavam tanto e depois você simplesmente a deixava falando sozinha e eu dizia Ana, ligue para ela e você dizia que não, que era exatamente isso que ela queria e que enfim... As coisas entre você e a sua mãe eu desisti de entender pouco tempo depois desse dia.
Mas então, a sua força. Você não deixava mais as pequenas coisas cotidianas te abalarem. O vazamento eterno do banheiro que era não-consertado a prazo, aquele azulejo mal colocado justo na entrada do apartamento e que, desde o primeiro dia que eu tropecei, você disse que estava brigando com Messias, pra que ele consertasse e até a última vez que eu passei por cima dele - não tropecei, afinal - e você nesse ponto já tinha há muito desistido de brigar com o pobre Messias e agora simplesmente ironizava toda a situação. Aquele dia maravilhoso, tempos depois que você já tinha decidido que não era Messias quem tinha culpa e sim Dona Zélia. E aí você foi com o pé enfaixado na reunião de condomínio, sentou na primeira cadeira e ficou com as pernas cruzadas, balançando o pé. Dona Zélia perguntou - Como se aquela vaca se importasse, você disse - O que foi isso minha filha e você disse que tinha sido a porra do azulejo. Lembro que você disse que ela falou alguma coisa sobre reforma do prédio, sobre empresa de prestação de serviços e daí você não lembrava o resto porque a raiva foi tanta que você esqueceu a história do pé e saiu bufando da sala. Lembro perfeitamente da gente sentados no sofá, tomando conhaque, eu com a mão no seu pé enfaixado e estávamos considerando a possibilidade de deixar assim mesmo pra que você não fosse trabalhar e foi nesse dia que você decidiu parar de se preocupar com essas coisas. Acho que você nem sabe que foi exatamente nesse dia, e provavelmente está irritada agora porque eu insisto em dizer como você se sente e você odeia que eu faça isso.
É por isso, Ana, por isso e também por várias outras coisas, óbvio, que eu decidi que não vou parar mais nunca de escrever para você. Simplesmente não vou. Me rendi a mim mesmo, me rendi à minha tristeza, à minha saudade e à minha loucura. Essa mesmo. Eu volto pra você sempre que escrevo e tanto sabíamos disso que tínhamos decidido que eu escreveria somente até certo ponto. Porque você sabia que me faria bem - até certo ponto. Mas Ana, eu quero que tudo isso se foda - até certo ponto. Vou continuar escrevendo, vou continuar enlouquecendo e vou continuar insistindo em nós - até certo ponto.










terça-feira, 1 de agosto de 2017

No desvio do nó




No peso de uma despedida rápida e conturbada, caindo entre os cabos de dados. Dois corpos separados, afastados, com a saudade fluida iniciada, começada. Contemplada bem de perto e sentida bem de longe. Saudade real, esfomeada, ávida. A feiúra de tanta sinceridade, travestida no drama: não há risco detrás da linha de segurança. A completa noção de cada dia que falta, de cada hora não vivida: Hoje acabou-se o amanhã. Amanhã não vai chegar. O tempo andou demais. Tanto que não devia ser dito, tanto que não foi dito, tanto por ouvir. Tanto por deixar morrer. Venha-se o tempo, venha-se a porra do porvir e adeus a tudo que houve aqui, logo aqui atrás. Precisar estar assim, pra nunca mais viver de novo o que sempre foi vivido e assim quem sabe despencar do vôo numa queda triste e solitária, somente um sentir bilateral e longínquo: lá onde não já há mais aqui.

domingo, 30 de julho de 2017

Marina V

a praia é o limiar, Marina
trampolim para a imensidão de nada
estar cercado de nada por todos os lados
o firmamento é um nada
a falta de horizontes é um nada
ser nada
sentir nada
ter nada
a terra, o chão não são
nada

tem muito de muita coisa aqui
tem sempre um tanto de um monte
a praia é areia molhada
é onde o mar vem e vai
o limite
a fronteira
o quase-lá





Sentado de frente para o mar, é como um abismo. O mar é um precipício, Marina. Uma queda eterna, um nunca-estar. Um sempre-ir. À minha frente, a queda; às minhas costas, o fim. 

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Live and let it be

eu bêbado, o mar me abraça
vivo confundindo amor e mar
concha, areia, lençol, espuma
barco, bar, vela, travesseiro,
varanda, passadiço, quilha, costado
cerveja e chão

um cangote candango
um par de coxas raiadas
um gato desconstruído
a porta aberta
a mesa testemunha
um cigarro - vários cigarros - não reclamados
aquela luz solitária acesa
um sofá confortável, apesar da certeza de que deveria ser maior
a louça, a pia, o fogão, a geladeira
e o
café

uma certeza:
essa coisa de sempre ir, sempre ir

nada me cabe
o álcool me alucina:
minha vida foi um peito aberto
balouçante, reboteante
um livro de visitas
cuja única assinatura - a minha - 
pairava solitária sobre o esboço de um coração nem terminado, desenhado por uma muchacha de uma cidade centenas de quilômetros longe de qualquer linha de costa

ainda bêbado, o mar me regurgita
e eu volto à terra
piso, trôpego, num chão antes firme
nada sinto firme
nada é firme

e sentir é doer
eu hoje confundo mar e dor

antes: vir
hoje: ir
agora: foda-se


Os bilhetes para Maurício 4/622

Tu tem que escolher, rapaz. É vida pra lá ou vida pra cá. Os dois não dá não.

sábado, 22 de julho de 2017

Primeiro de Julho

Eu sei e não tem quem me tire essa certeza: me fodi. Você vai vir derrubando todas as barreiras que eu tanto lutei pra levantar. Tudo quanto é muro, ponte, armadilha, poço e fortaleza que eu tão incansavelmente construí ao redor, em cima e dentro do meu coração. Você vai atravessar tudo isso como se nem existisse; como se tudo o que você visse fosse simplesmente uma cabana no meio de uma clareira e não um castelo com dez anos de segredos, ideias, convicções e evasivas plenas. Você não vê nada disso: você vê, com essa sua simplicidade filha da puta e essa certeza no querer, apenas um casebre caindo aos pedaços, triste como um domingo nublado. Um casebre mal feito, minúsculo, abandonado no meio do mato. Não um casebre bucólico com um riachinho, um cajueiro e um flamboyant fazendo a sombra na rede. Não. Eu sou uma torre de pedra, monumental e inatingível e você me vê barraco, precisando de uma ou duas demãos de tinta, uma varrida e um pote de flores na janela. E você se aproxima como quem não quer nada, na inocência tão madura que você vem trazendo. Como se você estivesse somente vindo pedir um copo de água. Você vai me pedir um copo de água e eu vou querer lhe dar a chave do meu castelo, da minha torre inalcançável. Nunca antes alguém teve esse chave, sabe por quê? Porque não tinha nem porta. Talvez tenha havido, um dia. Já não me lembro. Eu vejo vir, vindo no vento, o cheiro da nova estação. Mas a merda é que eu não queria que você soubesse disso. Não queria estar nessa posição. Nunca estive. Eu quem abro as portas, eu quem detenho as chaves. Eu entro nas casas e saio quando quero. E sabe por que não quero deixar você entrar? Porque você vai fazer, comigo, a mesma coisa que eu fiz, com outras. Eu sei como é fazer o que você é. Sei como fazer quem você é. Já estive aí, ja fui isso, já fiz assim. Você vai entrar, deitar na cama, tirar um cochilo e, no fim da tarde, vai pedir licença e sair, tão linda quanto entrou.

terça-feira, 11 de julho de 2017

Man overboard




Esta é a cena: Um homem de costas, em pé na areia da praia, olha para o mar. Você está a uma boa distância, o homem não lhe vê. À verdade, ele não pode lhe ver mesmo que se vire. Ele está com as mãos cruzadas atrás. O vento suave, mas insistente, levanta-lhe um pouco os cabelos, tremula as mangas soltas da camisa cinza. É o início da manhã, mas poderia ser o fim da tarde. Alguns pássaros sobrevoam o homem e o mar. As ondas, espumas calmas de contornos imemoriais. O céu sem nuvens anuncia uma manhã fresca - ou uma noite singela. Não há mais ninguém nesta praia, o homem está só. O homem não se move. Sua cabeça está inclinada milimetricamente, para trás. Você gostaria de saber o que o homen pensa. Ele pensa no mar. Observa o ir e vir das minúsculas ondas. Ele pensa que gostaria de caminhar até elas, sobre elas, e sumir no horizonte. Não para descobrir o que há além, mas para desaparecer junto com ele. Agora o homem se moveu. Inclinou ligeiramente a cabeça para a direita. Você gostaria de saber por quê. Terá concluído um pensamento? Sim. O homem concluiu que não, o horizonte não é a resposta. Não há resposta. Ele concluiu que esta é a vida, e tudo que nela há, com as agruras pertinentes. O homem sabe disso. Mas ele, o mar, lhe traz a sensação que precisa, a paz de espírito necessária para enfrentar a obrigação diária em estar vivo. Sempre foi ele, o mar, quem lhe trouxe esta paz.

Marina IV

Tente me dizer, Marina, o que eu não consigo escutar: Vai. Vou. Vou? Ai, Marina... sim, eu vou. Onde há costa, linha de mar; minúsculas conchas leitosas e toda a abundância de adeus. Tem muito adeus em mim, Marina, e eu não sei o que fazer com tanta saudade. Ela nunca fica, sabe, a saudade... Ela nunca fica na areia. Parece que a cada novo dia uma saudade nova se aconchega em mim. É certo, Marina, é certo que essas saudades são o eco de uma vida já vivida, eu sei. Mas, Marina, viver é sentir falta. Sou um náufrago nesse mar de adeuses. Naufraguei amiúde nas minhas ausências. Retorno sempre à linha de areia. Recolho um punhado de vida, guardo no bolso... e essa areia repleta de mim não sabe onde ser. Não se pode ser areia no mar, Marina, ou pode? Areia no mar é ilha? Sou um punhado de areia no meio desse mar de saudade, rodeado pela ausência. Estou cansado, Marina, muito cansado. Sou areia, sou mar; sou adeus, ausência e saudade.

segunda-feira, 3 de julho de 2017

No caminho do laço



Na leveza de um abraço demorado e natural, flutuando sobre a cidade. Dois corpos embolados, entrelaçados, com a violenta fluidez de uma saudade ainda nem nascida, mas já saciada. Já contemplada de longe e sentida de perto. Saudade já criada, já alimentada; empazinada. A beleza da sinceridade despudorada: o risco que se corre. A noção do tempo, ou ainda, a falta de noção do tempo: Hoje foi ontem e amanhã não se fez, mas já foi. O tempo não anda. Tanto que se pode ser dito, tanto que já foi dito, tanto por dizer. Tanto por fazer e viver. Foda-se o tempo, foda-se o porvir e foda-se muito mais o que houve lá pra trás. Querer estar assim, pra viver de novo o que nunca se conseguiu e assim quem sabe sobrevoar a cidade num abraço etéreo sem amarras nem correias, somente um sentir bilateral e contíguo; de lá pra ali e dali pra cá.

quinta-feira, 29 de junho de 2017

Marina III

''Mas a brisa, por ser carinhosa, é quem mais tem castigado.''


Um fiapo de trapo amarrado na velha estaca
fincada na praia
Minúsculos restos de tinta descascada
voando sem dó
Redes, bóias, restos de iscas e linhas
dependuradas ali
São os restos esquecidos das tantas
saudades que o mar viu nascer

Sonho que vou a caminho do mar. A pé e de coração leve, como disse Whitman. Sinto meus pés deslizarem suavemente sobre a planície. Não piso; quase flutuo. Os dedos, pequenos, sentem os grãos por entre; os dedos entram na areia fina do mar. É areia minha, Marina, areia daqui. A cada flexão de músculo, meus dedos afundam, entram mais e mais. Já não flutuo. Sinto, com cada centímetro de pele, que meus pés abraçam a praia. Paro. Parte de mim olha para o farol da Pedra Seca, à frente; a outra parte, essa que é vista agora, olha para dentro, Marina. Não há farol. Não há barco. Não há um porto; destino. Meu corpo, Marina, é um cais de emoções. Minha alma, antes marina, é um leito seco. Não há mar; é meu destino.