quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Diga lá, Kerouac.


"Dei adeus ao sujeitinho da Santa Tereza no cruzamento onde descemos e fui para a praia para passar a noite sobre a areia com meus cobertores, entrei areia adentro e parei ao sopé de um rochedo, onde os guardas não poderiam me ver nem me mandar embora. Cozinhei salsichas espetadas em galhos recém-cortados sobre o carvão de uma grande fogueira, e esquentei uma lata de macarrão com molho de queijo nos espaços ardentes entre brasas, e bebi vinho que acabara de comprar, e exultei em uma das noites mais agradáveis da minha vida. Entrei na água até os joelhos e me agachei um pouco e fiquei lá olhando para o céu noturno esplendoroso, o universo de escuridão e de diamantes da Avalokitesvara com suas dez maravilhas. "Bom, Ray", digo, contente, "só faltam mais alguns quilômetros. Você conseguiu de novo." Feliz, só com meu calção de banho, descalço, com os cabelos desgranhados, na escuridão avermelhada pelo fogo, cantando, bebendo vinho, cuspindo, correndo, pulando - isso sim é que é viver. Completamente sozinho e livre na areia macia da praia com o suspiro do mar bem ali, as estrelas virgens calorosas e falopianas refletindo nas embarrigadas águas fluidas do canal externo. E se o metal das latas estiver pelando e não for possível segurá-las com as mãos é só usar as velhas e boas luvas industriais, só isso. Deixei a comida esfriar um pouco para saborear mais vinho e meus pensamentos. Fiquei sentado sobre a areia com as pernas cruzadas e contemplei minha vida. Bom, pronto, e que diferença fazia? "O que vai acontecer comigo daqui para a frente?" Daí o vinho começou a atuar sobre as minhas papilas gustativas e não demorou  muito até que precisasse atacar as salsichas, abocanhando-as diretamente da ponta dos espetos, e mastiga mastiga, e caí de boca em cima das duas latas deliciosas com a velha e boa colher de medida, engolindo fartas porções de feijão e carne de porco quentes, ou de macarrão com molho que chiava de tão apimentado, e provavelmente com um pouco de areia na mistura.
(...) Então, refeição terminada, limpei a boca com minha bandana vermelha, lavei a louça no mar salgado, chutei uns montinhos de areia, dei uma volta, enxuguei, guardei, enfiei a velha e boa colher dentro da trouxa salgada e me enrolei no cobertor para uma noite de bom e merecido sono.
(...) e sonhei que acordei em um amanhecer cinzento, vi, cheirei (porque tinha visto todo o horizonte se transformar como se um assistente de cenário tivesse corrido para colocá-lo de volta no lugar e fazer com que eu acreditasse em sua realidade), e voltei a dormir, virando-me para o lado. "É sempre a mesma coisa", ouvi minha voz dizer no vazio que é tão fácil de abraçar durante o sono.

Um comentário:

Sandro Lobo disse...

Alô, rapaz. Estou bobo que ninguém ainda tenha descoberto seu textos. Não sei gosto tanto porque parecem com os meus, ou se porque sinto uma verossimilhança terrível no que passam. Dê notícia.