sexta-feira, 5 de maio de 2017

As partes de Virgínia

O pior de quando eu me separei de Virgínia não foram os telefonemas às duas da manhã, enquanto eu tentava terminar o capítulo desta história; nem as batidas na minha porta aos domingos ou as insistentes mensagens na minha caixa de e-mail. Virgínia, antes de se separar de mim, era exatamente assim. Não adquiriu nova personalidade, apenas intensificou alguns aspectos que, para mim, eram detestáveis.
Depois que nos separamos, ficou claro para nós dois que era a coisa certa a se fazer. E essa clarividência que nos atacou tão de repente foi o golpe mais baixo que poderia vir; o que eu não esperava. Ela precisava me atormentar, e eu precisava ser atormentado. Ambos não sabíamos disso naquele momento, enquanto trepávamos loucamente no banheiro da concessionária ou no quarto de limpeza do hospital.
Mas, à noite, quando virávamos cada um para o seu lado da cama - ela olhando a parede, eu olhando a janela -, pensávamos em como seria se estivéssemos em outro lado da cama, ou ainda, em outra cama. 'E se...' foi o nosso segredo durante anos.
Acordávamos certos dias em silêncio. Eu me detia na cama fingindo dormir, enquanto ela escovava os dentes e mijava, e assim não teríamos que nos olhar através do espelho. Ou eu corria direto para a cozinha e preparava o café e os ovos, e não teríamos que sentar na frente um do outro na mesa. Ela também tinha os seus subterfúgios e eu os notava mais sutilmente, fosse no gozo fingido para apressar o fim do sexo, fosse no plantão de mentira nos finais de semana, para não me ver gritando com a televisão.
Entretanto, nosso relacionamento terminou. E a pior coisa disso foi perceber que, agora, eu não sabia o que fazer com a minha liberdade. Não sei mais quem sou e o que quero. Talvez quisesse ser promovido a gerente regional, mas não quero me esforçar para isso. Talvez quisesse viajar para a Europa, mas não quero gastar dinheiro. Talvez vá passar o carnaval em Salvador, mas não tenho paciência para multidões.
"Devíamos ter tido um filho", penso enquanto compro o jornal de manhã a caminho da concessionária.

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