domingo, 30 de julho de 2017

Marina V

a praia é o limiar, Marina
trampolim para a imensidão de nada
estar cercado de nada por todos os lados
o firmamento é um nada
a falta de horizontes é um nada
ser nada
sentir nada
ter nada
a terra, o chão não são
nada

tem muito de muita coisa aqui
tem sempre um tanto de um monte
a praia é areia molhada
é onde o mar vem e vai
o limite
a fronteira
o quase-lá





Sentado de frente para o mar, é como um abismo. O mar é um precipício, Marina. Uma queda eterna, um nunca-estar. Um sempre-ir. À minha frente, a queda; às minhas costas, o fim. 

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Live and let it be

eu bêbado, o mar me abraça
vivo confundindo amor e mar
concha, areia, lençol, espuma
barco, bar, vela, travesseiro,
varanda, passadiço, quilha, costado
cerveja e chão

um cangote candango
um par de coxas raiadas
um gato desconstruído
a porta aberta
a mesa testemunha
um cigarro - vários cigarros - não reclamados
aquela luz solitária acesa
um sofá confortável, apesar da certeza de que deveria ser maior
a louça, a pia, o fogão, a geladeira
e o
café

uma certeza:
essa coisa de sempre ir, sempre ir

nada me cabe
o álcool me alucina:
minha vida foi um peito aberto
balouçante, reboteante
um livro de visitas
cuja única assinatura - a minha - 
pairava solitária sobre o esboço de um coração nem terminado, desenhado por uma muchacha de uma cidade centenas de quilômetros longe de qualquer linha de costa

ainda bêbado, o mar me regurgita
e eu volto à terra
piso, trôpego, num chão antes firme
nada sinto firme
nada é firme

e sentir é doer
eu hoje confundo mar e dor

antes: vir
hoje: ir
agora: foda-se


Os bilhetes para Maurício 4/622

Tu tem que escolher, rapaz. É vida pra lá ou vida pra cá. Os dois não dá não.

sábado, 22 de julho de 2017

Primeiro de Julho

Eu sei e não tem quem me tire essa certeza: me fodi. Você vai vir derrubando todas as barreiras que eu tanto lutei pra levantar. Tudo quanto é muro, ponte, armadilha, poço e fortaleza que eu tão incansavelmente construí ao redor, em cima e dentro do meu coração. Você vai atravessar tudo isso como se nem existisse; como se tudo o que você visse fosse simplesmente uma cabana no meio de uma clareira e não um castelo com dez anos de segredos, ideias, convicções e evasivas plenas. Você não vê nada disso: você vê, com essa sua simplicidade filha da puta e essa certeza no querer, apenas um casebre caindo aos pedaços, triste como um domingo nublado. Um casebre mal feito, minúsculo, abandonado no meio do mato. Não um casebre bucólico com um riachinho, um cajueiro e um flamboyant fazendo a sombra na rede. Não. Eu sou uma torre de pedra, monumental e inatingível e você me vê barraco, precisando de uma ou duas demãos de tinta, uma varrida e um pote de flores na janela. E você se aproxima como quem não quer nada, na inocência tão madura que você vem trazendo. Como se você estivesse somente vindo pedir um copo de água. Você vai me pedir um copo de água e eu vou querer lhe dar a chave do meu castelo, da minha torre inalcançável. Nunca antes alguém teve esse chave, sabe por quê? Porque não tinha nem porta. Talvez tenha havido, um dia. Já não me lembro. Eu vejo vir, vindo no vento, o cheiro da nova estação. Mas a merda é que eu não queria que você soubesse disso. Não queria estar nessa posição. Nunca estive. Eu quem abro as portas, eu quem detenho as chaves. Eu entro nas casas e saio quando quero. E sabe por que não quero deixar você entrar? Porque você vai fazer, comigo, a mesma coisa que eu fiz, com outras. Eu sei como é fazer o que você é. Sei como fazer quem você é. Já estive aí, ja fui isso, já fiz assim. Você vai entrar, deitar na cama, tirar um cochilo e, no fim da tarde, vai pedir licença e sair, tão linda quanto entrou.

sexta-feira, 14 de julho de 2017

Conversando com Paulo Coelho

- Morro de saudades.
- De quê?
- De não estar apaixonado. Saudades de pensar racionalmente.
- Se apaixonar é bom. Se desapaixonar é melhor.



- Mas você desapaixona rápido, você sabe.
- Eu? Eu não desapaixonei quase nunca. Só quando fizeram merda comigo.
- Você se apaixonou por outras.
- Talvez... mas olhando para trás, com os olhos que eu tenho agora, eu percebo que não estava realmente apaixonado. Não estava disposto a me modificar por causa delas, nem a alterar (ou construir) planos, nem a sair muito da minha rotina por causa delas.



- E com ela? Vai rolar?
- Rolar o quê? Tá rolando.
- Tá? Compromisso?
- Como assim? Quando é que uma relação é um compromisso?
- Ué, do jeito que você achar que seja uma relação. Quando você deixa de fazer só por si e faz pelo outro também. Quando a pessoa se compromete.
- Mas é isso que eu estou perguntando: No que consiste 'se comprometer'. Qual o nível de esforço e altruísmo necessários para que a relação seja qualificada como 'compromisso'? Porque eu posso ter tido isso com alguém e não ter sabido. Ou pior, ter feito alguém se sentir assim comigo e não perceber.
- Não existe manual nem marca específica de comprometimento. Você apenas sabe.
- Mas isso não tem o menor sentido. Isso é crença, não relacionamento. Veja que não estou perguntando sobre sentimento. Eu admito que sentimento seja algo totalmente subjetivo. Mas estou perguntando de compromisso.
- Compromisso também é subjetivo. Raciocina um pouco.
- É esse o problema. Eu odeio estar apaixonado precisamente porque não dá pra raciocinar direito. Por isso pulei fora dos meus relacionamentos. Porque notei que estava ficando desorientado



- Minha crise é essa. Agora mesmo eu tenho notado essa desorientação. Estou percebendo que minha intuição tem falhado, e minha intuição funciona muitíssimo bem. Eu não quero pular fora. Pelo contrário, eu quero enfrentar essa desorientação e ir além.
- Geralmente quando um relacionamento começa ele costuma vir com atestado de compromisso em três vias, lavrado em cartório com duas testemunhas.
- Eu entendi a ironia, mas preciso que você me escute sem esses julgamentos. Você já me conhece, mas eu preciso que você me ouça como se não me conhecesse.
- Ok.
- Ótimo



- Eu entendo que não existem garantias, mas meu problema ronda aí: Eu disse que confio na minha intuição, no meu julgamento e, estando apaixonado, eu sinto que eles estão descalibrados. Melhor, me corrijo: descalibrados não, mas eles são afetados pela racionalidade do meu cérebro. Me explico: é como se minha intuição fosse uma bússola e meu cérebro fosse um ímã próximo, influenciando a agulha. Então pergunto: como vou me jogar numa relação, baseado no meu instinto, no que eu sinto, se eu acho que ele está sendo influenciado? Essa influência do meu cérebro é real? Ele está tentando me sabotar? Tentando me fazer enxergar os perigos de se viver somente pela bússola? Mas a bússola  tem funcionado perfeitamente todos esses anos. É como se o ímã, quando estou apaixonado, exercesse uma força muito maior do que antes. 



- Acho que temos um paradoxo, então. Se você me diz que estar apaixonado lhe tira essa intuição, e você não quer se relacionar porque você não está com a intuição em perfeito estado, então você só pode se relacionar com alguém pela qual você não esteja apaixonado.
- Mas é isso. Quando eu percebo essa influência, essa desorientação, eu pulo fora. E eu quero enfrentar essa desorientação, ou seja, eu quero confiar mais na minha intuição e me jogar.
- Então... se a sua intuição está afetada, confie no seu sentimento. Se você está sentindo vontade de começar alguma coisa, de fortalecer uma relação, um laço, então faça. Eu não sei porque você complica tanto isso, como se devêssemos ter um certificado da intuição. É só sentir, só viver. Se não der certo, pronto, vai acabar. Cada um pro seu lado, como acontece com todo mundo.
- Quer dizer que é unilateral assim? ''Estou apaixonado, foda-se'' e esperar pelo melhor? Que a outra pessoa também se sinta assim? Quero dizer... você demonstra como se sente e espera que a outra pessoa corresponda? Porque confesso, até hoje nunca me preocupei com isso. Comigo sempre foi 'Eu quero ficar com você, se você não quer, pra mim tanto faz''.
- Um compromisso surge disso, do diálogo. Os acertos, a postura de cada um, os detalhes do cotidiano. Carinho, altruísmo, convivência. Deixar um pouco de lado o que você quer para atender a necessidade do outro; isso é compromisso. É uma descoberta que acontece aos poucos. Se você diz para outra pessoa o que sente e aquilo é mútuo, isso vai acontecendo naturalmente. Não precisa necessariamente de um contrato ou de uma lista de exigências. Obviamente, cada um tem seu próprio tipo de relacionamento, mas a base de um compromisso é sempre o carinho, o altruísmo e o desejo de ver o outro bem.
- Mas isso me preocupa: mutualidade, reciprocidade. Como eu sei que aquilo que eu estou vendo, partindo da outra pessoa em direção a mim, é real? Como eu sei que não é uma ilusão?
- Perguntando o que a outra pessoa sente, oras.
- Todo mundo mente.
- Aí está o abismo.



''É onde você se joga.''



''Sem garantias.''



- É sério isso? Parece algo que você diria para os seus filhos sobre como os bebês nascem. Não tem lógica.
- Você tem medo. Muito medo. E você culpa a racionalidade. Ou chama os outros de irracionais.
- Eu chamo de sentido de autopreservação.



- Me acompanhe na minha analogia: Alguém diz, em frente a um penhasco, ''Pule, cara''. Você está tentando me dizer que se ele não pular, ele é covarde?
- Tem paraquedas.
- Que paraquedas? Quem me deu paraquedas? Ninguém me deu paraquedas nenhum. Só estão dizendo que eu deveria pular e foda-se. Pelo menos foi o que eu aprendi do mundo até agora.
- O paraquedas é a reciprocidade.
- Então vamos melhorar a analogia:


Alguém vem e me dá um paraquedas. Me garante que ele vai abrir e que eu vou aterrisar em segurança. Depois me olha e diz: Agora pode pular.


- É a única maneira de pular, na minha cabeça. Isso sim tem lógica.
- Então não pule. Não ame. Passe a vida sem saber o que é compartilhar. Sem aprender a aceitar a outra pessoa e lidar com os problemas. Sem saber o que é deixar um pouco de si para o outro, simplesmente porque não tem garantias.
- Se eu usar o que você está dizendo para construir outra analogia, ficaria da seguinte forma.


''Pule sem paraquedas mesmo, você não vai virar pizza lá embaixo.''
''Como não?''
''Acredite, não vai.''
''Por que não?''
''Não tem como saber. Você tem que acreditar que não vai virar pizza lá embaixo e arriscar''.


- Mas ninguém disse que você não vai bater no chão.
- Ok, então ficaria assim:


''Vai. Pula sem paraquedas.''
''Mas se eu pular sem paraquedas eu me espatifo lá embaixo.''
''Ou não.''
''Como assim?''
''É isso mesmo... por algum motivo que ninguém consegue explicar, há a possibilidade de você aterrissar inteiro.''



- A questão não é a aterrisagem. É o salto. A experiência do saltar. O que você vai ver lá de cima. A sensação. Se vai se espatifar ou descer de paraquedas, isso não se sabe.
- Peraí. Você está me dizendo então que é como um Salto de Schrodinger: Pule. Você não tem 100% de garantias de que vai bater no chão, nem 100% de garantias de que não vai. Eu estou tentando achar uma analogia que explique isso. Porque, nesse cenário do salto, a gravidade não é a única lei que influencia. Porque não é um cenário real e, por isso, as leis da física não se aplicam. Afinal, se eu subir na Pedra da Gávea e pular de lá sem paraquedas, eu me arrebento no chão.
- Amar é um pulo no abismo. Isso é só medo. Porque amar machuca, doí. A gente cria expectativa e isso é normal, como tudo. Você quer analogias porque quer complicar. Você quer complicar algo que não é complicado, é simples. Você pode se machucar e você vai, algumas vezes. Mas pode ser também um simples espinho numa jornada de flores muito maior. Algumas pessoas infelizmente encontram somente espinhos. Quando você perceber que não está funcionando, acaba. Pronto. É uma experiência.



- Certo. Valeu, falou. Forte abraço.





terça-feira, 11 de julho de 2017

Man overboard




Esta é a cena: Um homem de costas, em pé na areia da praia, olha para o mar. Você está a uma boa distância, o homem não lhe vê. À verdade, ele não pode lhe ver mesmo que se vire. Ele está com as mãos cruzadas atrás. O vento suave, mas insistente, levanta-lhe um pouco os cabelos, tremula as mangas soltas da camisa cinza. É o início da manhã, mas poderia ser o fim da tarde. Alguns pássaros sobrevoam o homem e o mar. As ondas, espumas calmas de contornos imemoriais. O céu sem nuvens anuncia uma manhã fresca - ou uma noite singela. Não há mais ninguém nesta praia, o homem está só. O homem não se move. Sua cabeça está inclinada milimetricamente, para trás. Você gostaria de saber o que o homen pensa. Ele pensa no mar. Observa o ir e vir das minúsculas ondas. Ele pensa que gostaria de caminhar até elas, sobre elas, e sumir no horizonte. Não para descobrir o que há além, mas para desaparecer junto com ele. Agora o homem se moveu. Inclinou ligeiramente a cabeça para a direita. Você gostaria de saber por quê. Terá concluído um pensamento? Sim. O homem concluiu que não, o horizonte não é a resposta. Não há resposta. Ele concluiu que esta é a vida, e tudo que nela há, com as agruras pertinentes. O homem sabe disso. Mas ele, o mar, lhe traz a sensação que precisa, a paz de espírito necessária para enfrentar a obrigação diária em estar vivo. Sempre foi ele, o mar, quem lhe trouxe esta paz.

Marina IV

Tente me dizer, Marina, o que eu não consigo escutar: Vai. Vou. Vou? Ai, Marina... sim, eu vou. Onde há costa, linha de mar; minúsculas conchas leitosas e toda a abundância de adeus. Tem muito adeus em mim, Marina, e eu não sei o que fazer com tanta saudade. Ela nunca fica, sabe, a saudade... Ela nunca fica na areia. Parece que a cada novo dia uma saudade nova se aconchega em mim. É certo, Marina, é certo que essas saudades são o eco de uma vida já vivida, eu sei. Mas, Marina, viver é sentir falta. Sou um náufrago nesse mar de adeuses. Naufraguei amiúde nas minhas ausências. Retorno sempre à linha de areia. Recolho um punhado de vida, guardo no bolso... e essa areia repleta de mim não sabe onde ser. Não se pode ser areia no mar, Marina, ou pode? Areia no mar é ilha? Sou um punhado de areia no meio desse mar de saudade, rodeado pela ausência. Estou cansado, Marina, muito cansado. Sou areia, sou mar; sou adeus, ausência e saudade.

quinta-feira, 6 de julho de 2017

As partes de Donatella

Vem, e se aconchega em mim. Se aninha na dobra da minha costela, olha pra mim com os olhos úmidos, sonolentos, resmunga algo ininteligível e volta a dormir. Seus olhos verdes me dizem: Não me machuque, eu sou muito frágil. E é. Move-se feito criança, curiosa e interessada. Tem uma beleza felina e, ao mesmo tempo inocente. Um começo de vida frágil, mas será grande, forte e independente.  Está aprendendo com a melhor.

segunda-feira, 3 de julho de 2017

No caminho do laço



Na leveza de um abraço demorado e natural, flutuando sobre a cidade. Dois corpos embolados, entrelaçados, com a violenta fluidez de uma saudade ainda nem nascida, mas já saciada. Já contemplada de longe e sentida de perto. Saudade já criada, já alimentada; empazinada. A beleza da sinceridade despudorada: o risco que se corre. A noção do tempo, ou ainda, a falta de noção do tempo: Hoje foi ontem e amanhã não se fez, mas já foi. O tempo não anda. Tanto que se pode ser dito, tanto que já foi dito, tanto por dizer. Tanto por fazer e viver. Foda-se o tempo, foda-se o porvir e foda-se muito mais o que houve lá pra trás. Querer estar assim, pra viver de novo o que nunca se conseguiu e assim quem sabe sobrevoar a cidade num abraço etéreo sem amarras nem correias, somente um sentir bilateral e contíguo; de lá pra ali e dali pra cá.