domingo, 18 de novembro de 2007

Prapele, canentra

"A escrita me saía espontânea, num ritmo que não era meu, e foi na batata da perna de Teresa que escrevi as primeiras palavras na língua nativa. No princípio ela até gostou, ficou lisonjeada quando eu lhe disse que estava escrevendo um livro nela. Depois deu pra ter ciúme, deu pra me recusar seu corpo, disse que eu só a procurava a fim de escrever nela, e o livro já ia pelo sétimo capítulo quando ela me abandonou. Sem ela, perdi o fio do novelo, voltei ao prefácio, meu conhecimento da língua regrediu, pensei até em largar tudo e ir embora pra Hamburgo. Passava os dias catatônico diante de uma folha de papel em branco, eu tinha me viciado em Teresa.Experimentei escrever alguma coisa em mim mesmo, mas não era tão bom, então fui a Copacabana procurar as putas. Pagava pra escrever nelas, e talvez lhes pagasse além do devido, pois elas simulavam orgasmos que me roubavam toda concentração. Toquei na casa de Teresa, estava casada, chorei, ela me deu a mão, permitiu que eu escrevesse umas breves palavras enquanto o marido não vinha. Passei a assediar as estudantes, que às vezes me deixavam escrever nas suas blusas, depois na dobra do braço, onde sentiam cócegas, depois na saia, depois nas coxas. E elas mostravam esses escritos às colegas, que muito os apreciavam, e subiam ao meu apartamento e me pediam que escrevesse o livro na cara delas, no pescoço, depois despiam a blusa e me ofereciam os seios, a barriga e as costas. ... E davam a ler meus escritos a novas colegas, que subiam ao meu apartamento e me imploravam para arrancar suas calcinhas, e o negro das minhas letras reluzia em suas nádegas rosadas. Moças entravam e saíam da minha vida, e meu livro se dispersava por aí, cada capítulo a voar para um lado. Foi quando apareceu aquela que se deitou em minha cama e me ensinou a escrever de trás para diante. Zelosa dos meus escritos, só ela os sabia ler, mirando-se no espelho, e de noite apagava o que de dia fora escrito, para que eu jamais cessasse de escrever meu livro nela. E engravidou de mim, e na sua barriga o livro foi ganhando novas formas, e foram dias e noites sem pausa, sem comer um sanduíche, trancado no quartinho da agência, até que eu cunhasse, no limite das forças a frase final: e a mulher amada, cujo leite eu já sorvera, me fez beber da água com que havia lavado sua blusa."

(Budapeste, Chico Buarque)






"Eu entrava no quarto de Luísa, onde nunca entrei, e conseguia ler o diário dela, que nunca li. Era a violação que eu mais tinha sonhado na vida: ver o que ela tanto escrevia, apalpar as letras, acariciar as linhas, descobrir o porquê do ciúme das páginas. Eram páginas de papiros, as escrituras em língua icônica, ideogramática, mas eu lia plenamente. Nenhuma noite com Luísa na cama tinha me dado tanto prazer. Desde a nossa primeira relação, aos gritos, a cada orgasmo conjunto, nunca tinha experimentado um gozo tão brutal como aquele que me penetrava do diário. Era a língua das palavras que me acariciava por dentro, me contorcia, me dava breves flutuações. E o mais extraordinário era que a autoria desse novo orgasmo, literal, era de Luísa; e meu amor por ela então se multiplicava a cada letra. Eu tentava folhear os papiros, com o êxtase de quem descobre a escrita ou registra, para os tempos prósperos, o primeiro orgasmo da humanidade; algo assim da arqueologia íntima do ser humano, perdida nos subúrbios dos desejos primitivos, e que jorrava na ponta dos dedos e da língua."

(O evangelho segundo Lúcifer, Arturo Gouveia)

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