sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

No nascer dos arrebóis, ainda ouço a tua voz.

"'Eu sou a que chega aos seus sonhos todas as noites e lhe diz isto: Olhos de cão azul.' E disse que ia aos restaurantes e dizia a todos os garçons, antes de fazer o pedido: Olhos de cão azul. Mas os garçons faziam uma respeitosa reverência, sem que recordassem nunca haver dito isso em seus sonhos. Depois escrevia nos guardanapos e riscava com a faca o verniz das mesas. Olhos de cão azul. E nos espelhos embaciados dos hóteis, da estações, de todos os edifícios públicos, escrevia com o indicador. Olhos de cão azul."




A silhueta da moça se projetava sobre a tela branca, alva e límpida. Os cabelos a meia altura entre as orelhas e a omoplata se faziam ondulados, negros como todo o restante de sua figura estampada no pano. Devíamos estar em julho, e a umidade no ar se fazia presente, era bom. Ou talvez o ar ali dentro estivesse mais denso do que eu poderia imaginar. As luzes, baixas, decoradas ao estilo vitoriano, imitação de candelabros, acompanhavam a quantidade de fileiras, e em cada parede revestida com tacos de madeira maciça, notávamos as velas de mentira. O espaço era pequeno, mas aconchegante; poltronas de couro - muitas com o encosto e os bancos rasgados - também muito confortáveis e enquanto eu procurava a melhor forma de me prender a atenção - dividida entre a procura pela melhor posição e o corpo escurecido da moça - podia ouvir a música de fundo, que soava lenta, mas presente, imponente.
E então a moça dançou. Girou, rodopiou; devagar e sensual, a moça levantou-se e fez moviméntos tépidos ao redor do objeto. Os braços esguios dançavam como outras partes do seu corpo suave - serpentes vivas projetando-se dos seus ombros. Era uma dança magnífica e eu estava inebriado pela intensidade e calor daqueles movimentos; pela forma como o corpo dela me chamava, me incitava, clamava pelos meus olhos e eu estava olhando, e estava sentindo, e estava ouvindo e tudo eu notava.Eu queria olhar para os lados e dizer às pessoas da platéia que aquela era a dança mais bela que eu jamais vira; queria demonstrar minha emoção e comentar com o companheiro do lado. "Já viu algo tão bonito?". Mas não havia platéia. Erámos eu e a moça, e ela dançava para mim.
Mas a música parou. A moça sentou-se. O ar se fez menos rarefeito, a umidade se desfez, as luzes se extingiram e o frio retornou, pálido. A silhueta negra se fez alva e a moça foi embora.

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